Carta Vária, porquê?



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014


Te cuida Miró! Os quarenta ladrões estão à solta!

 

 
Conheci o Miró na prisão…
Depois de uma greve de fome de trinta dias, na penitenciária do Estado de S. Paulo, para onde cerca de trinta presos políticos foram transferidos por ordem do auditor militar, um tal Dr.Nelson, fomos depois enviados para o presidio do Carandiru. Nessa greve, foi importante a acção, entre outras pessoas, do Núncio Apostólico e do Cardeal Arms, Arcebispo de S.Paulo, e sobretudo, a decisão da ditadura, transformada em ordem para os médicos, de que nenhum de nós poderia morrer. Devo acrescentar ainda que a penitenciária de S. Paulo era um lugar destinado não apenas a guardar os presos até que eles cumprissem a sua pena, mas sim a destrui-los psicológica e moralmente. Ao entrar lá, perdia-se imediatamente a identidade e os presos passavam a ser conhecidos apenas por um nº que os acompanharia enquanto lá estivessem. A reclusão era total, quebrada apenas por uma hora de “banho de sol”, se essa fosse a vontade do Diretor. A mesma arbitrariedade em relação às visitas, obrigatórias por lei, mas que a vontade do diretor podia cancelar a seu belo prazer.

Chegados ao presidio do Carandiriu, o coronel da PM Fernão Guedes, seu diretor, reuniu-nos e disse-nos o seguinte:

-“Agora tratem de se recuperar. Os médicos do presidio estão a par da vossa situação. A minha função aqui, como Diretor, é apenas a de manter-vos presos, proporcionando-vos as condições necessárias para que a vossa vida corra normalmente, pois não é meu direito agravar as vossas penas, tornando-as mais difíceis ainda de cumprir. Esta norma serve para mim, para todos os responsáveis de pavilhão e para vós mesmos. Agora distribuam-se pelas celas como quiserem e organizem-se neste espaço. As vossas visitas e banhos de sol serão regidos pelas mesmas normas de todos os presos.”

Era a primeira vez, em todas as prisões por onde tinha passado, onde um Diretor afirmava tais coisas. Afirmou e sempre cumpriu. Quando ficámos sós, sentámo-nos numa sala grande, olhámos uns para os outros. Custava-nos a acreditar no que ouvíramos, mas diante da realidade, começámos a definir o que seria a nossa vida ali naquele presidio. Fizemos então uma lista de pedidos a encaminhar à Administração: receber livros, jornais e música; celas abertas durante todo o dia; possibilidade para praticar desporto e ainda de fazer artesanato-atividade importante para nós - não só porque nos mantinha ativos, mas também porque ajudava as famílias de alguns companheiros em dificuldade. Todas as exigências foram atendidas sem reservas.

Foi nessas circunstâncias que um dia chegaram ao presidio, durante uma visita, umas coleções de reproduções de pintores célebres, entre os quais Juan Miró, que quase ninguém conhecia, mas que agradou a  todos pela possibilidade de ser reproduzido em couro, pelo sistema  BATIK.

Comigo, foi amor à primeira vista, sempre que podia, levava o livro, onde estavam as reproduções das suas pinturas, para a cela e ficava a examiná-las horas seguidas, tentando encontrar nelas algum sentido. Depois via-me de olhos fechados a examiná-los e, aí, tudo se animava por detrás da minha retina. Comecei até a pensar que  Miró, antes de pintar os seus quadros, ficaria de olhos fechados  a olhar para o nada, esperando que alguma coisa acontecesse e então aconteciam aquelas pinturas. Mais tarde, li que Miró pintava as imagens que se iam construindo na sua cabeça quando estava de olhos fechados. É por isso que Miró foi meu companheiro de prisão e  continuou a acompanhar-me pelos muitos lugares por onde andei depois.

Vem isto tudo a respeito da polémica absurda que agora se levanta em torno das 85 pinturas de Miró, propriedade do estado português, melhor dizendo, de todos os portugueses, que o 1º Ministro e a horda de traficantes que fazem parte do seu Governo, querem vender para saldar parte de uma dívida insolúvel que eles mesmos fizeram.

Nem me admira muito que esta horda esteja tão determinada a vender aquilo que não é seu, uma vez que eles são capazes de vender a própria mãe e entrega-la ao comprador.

Muitas vezes fala-se com horror da Inquisição que queimava pessoas vivas, desenterrava cadáveres para os julgar e queimar na fogueira, queimava livros, desterrava pessoas, destruía obras de arte, era inimiga jurada da ciência, e durante mais de 300 anos reduziu este país à maior indigência intelectual e política de que se tem memória na História. Fala-se também com horror, das perseguições nazistas aos intelectuais, aos homens de cultura, aos artistas de todas as artes e também da queima pública de livros. Para um nazi bastava apenas um livro: Mein Kampf. Foi esse o mesmo argumento que levou o comandante muçulmano que conquistou Alexandria a mandar queimar a biblioteca de Alexandria, a maior, a mais rica e a mais famosa do mundo. Segundo ele, o mundo precisava apenas de um livro: O Corão.

Mas não precisamos de ir procurar argumentos a outros lugares. O que fizeram em Portugal as Mesas Censórias? Que comportamento teve em relação à cultura e à inteligência, o fascismo? E já depois do 25 de Abril, não houve aqui um Secretário de Estado da Cultura e um Primeiro Ministro que anatematizaram  a obra do único prémio Nobel de Literatura que Portugal Já teve, José saramago?

O que me preocupa, no caso da tentativa de venda fraudulenta das obras de Miró, é que se transforme apenas numa tempestade num copo de água com debates acessos no princípio, mornos, a seguir, e depois esfrie, animando a quadrilha do governo a uma nova tentativa, melhor preparada, e com sucesso quase garantido. No momento, a discussão está na rua mas ainda não chegou ao povo que, pressionado pelos muitos problemas que o afligem, não tem tempo nem cabeça para se preocupar com atentados culturais. É necessário que a indignação chegue às ruas e  que as  pessoas comuns entendam que um povo sem cultura, não é um povo, é, no máximo, um rebanho  de carneiros castrados que querem apenas comer. E é na transformação deste povo português que já deu provas em muitas ocasiões de ser capaz de tomar grandes atitudes, atitudes até extremas, de ocupar o seu lugar na História, que essa quadrilha do Governo e seus apoiantes, dentro e fora da Assembleia da República, quer transformar em rebanho castrado. Hoje vendem o Miró, amanhã o acervo do Museu de Arte Antiga, depois o Museu de Arte Moderna, logo a seguir o Jerónimos e Alcobaça a uma empresa hoteleira e não pararão até que nos transformem a todos em trabalhadores temporários com deveres e sem direitos. Sei do que estou a falar porque levo mais de 50 anos a lutar contra essas quadrilhas e a tentar contribuir para a construção de um mundo solidário, fraterno e humano, onde a cultura seja um bem primordial.

Alípio de Freitas

P.S. Sabe-se que o BPN teria no seu acervo não apenas 85 quadros do Miró mas sim 200 peças. O que é feito das 115 que faltam? Talvez a quadrilha que geriu o BPN a seu favor e faz de conta que nada disto é com ela saiba alguma coisa sobre o assunto…!

Se eu tivesse os 35 milhões de euros, eu mesmo comprava os 85 quadros de Miró e haveria de construir um Museu onde seria proibida a entrada a todos os membros da quadrilha do Governo e ainda a de todos aqueles que a apoiam dentro e fora do Parlamento…

 

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