Carta Vária, porquê?



domingo, 16 de outubro de 2016

Pequenas histórias da memória

Cheguei ao Brasil num dia de carnaval, em Recife. Cheguei e converti-me, para sempre a esse país. Para sempre. Depois de alguns dias na capital do frevo embarquei para s Luís do Maranhão onde D. Delgado,  o Arcebispo de então,  me recebeu carinhosamente. Luís era então uma cidade gentil , mediana,  com aspeto colonial.  O meu destino era a Universidade de S. Luís, onde por alguns anos leccionei . Mas S. Luís não era apenas uma cidade colonial era também uma cidade onde as lutas operárias já se faziam sentir, grande parte da sua população morava em casas de barro e palha, construídas no mangue, onde a pobreza era uma marca indefectivel  no seu contexto diário. Apesar disso a alegria de viver aparecia em todo o seu tecido social quer no carnaval quer nas festas joninas quer nos grupos de bumba meu boi quer em associações de caracter longinquamente cultural.Foi a sua estrutura sociocultural que me arrancou à
Universidade e me jogou no mangue , nas casas de barro  pau a pique e palha de palmeira. Nas ruas lamacentas, na falta de escolas primárias e na indiferença dos poderes que deviam minorar ou mudar este estado de abandono da grande maioria do seu povo. Deu-se então a minha nova conversão ao Brasil. Deixei a Universidade, peguei os meus poucos haveres e fui morar num desses bairros pobres de ruas sem calçamento, de gente sem trabalho, de todo o povo sem qualquer tipo de assistência. Foi uma surpresa geral para os meus colegas de profissão e para os meus novos vizinhos dos “alagados”. Padre era coisa que por ali não se via, não porque não houvesse lá o que fazer mas porque a cidade colonial era mais condizente com o estado social e talvez até com a sua vocação. Foram tempos difíceis em que tudo teve que ser criado com os moradores e algumas pessoas da cidade colonial. Tudo! Desde as escolas ao centro de saúde, aos poucos hábitos religiosos. Descobriu-se que a solidariedade era um valor e que ninguém estava só no mundo pois sempre havia uma mão a seu lado. Ninguém foi dispensado de participar nessa obra. Ninguém. As festas que antes eram particulares passaram a ser de toda a rua ou até do bairro. A missa dominical de que eles já tinham ouvido falar nas aldeias de onde vieram tornou-se um momento de celebração coletiva onde tudo se discutia, aprovava e cumpria. Assim,  a assistência aos velhinhos, a frequência da escola primária, a preocupação com o trabalho e até o bem-estar material de cada um eram assuntos  discutidos na hora na missa dominical de que todos participavam, rua por rua A minha “conversão” ao Brasil continuava. É claro que estas mudanças, ou estas novidades trouxeram consigo invejas que nós não prevíamos, críticas que nada tinha a ver com a realidade mas a união entre todas reforçava-se dia a dia. Pessoas de outras paróquias vinham á nossa paróquia não só para ver como era mas também para participar porque a missa, um batizado, um casamento tinham uma mística que não existia nas suas paróquias. Até a igreja evangélica que existia na paróquia se dissolveu  e começou a participar com todo o direito nas nossas ações religiosas e de carater cultural. A autoridade eclesiástica manteve-se calada durante algum tempo mas pressionada por gente da igreja  e de outos sectores sociais da cidade viu-se obrigada a intervir sob a alegação de que nós estávamos ultrapassando as normas da igreja. Em primeiro lugar todos os atos de culto eram em português: a missa, as leituras, a pregação. Tudo tinha a participação ativa de todos os crentes. A rua era o lugar escolhido para todas as manifestações religiosas ou outras que a população desejasse fazer. Quem discordou desta nova igreja e quis manter os seus laços com a igreja tradicional mudou de favela voluntariamente. Ao fim de algum tempo a paciência da autoridade eclesiástica acabou.Eu teria de mudar de paróquia, ou voltar à Universidade. Eu, porém, tinha um compromisso comigo mesmo e com o Brasil que assumira quando me converti ao Brasil. Peguei a minha rede e os meus poucos haveres e sem me despedir de ninguém, morei alguns dias com um antigo companheiro de luta e depois ingressei em definitivo nas Ligas Camponesas.
Esta é uma história que se escreve com muitos outros episódios, e que vão desde a prisão à tortura e termina com a minha quase expulsão do Brasil pois o país que eu amava e amo declarava-me apátrida.
Apesar disso aminha conversão mantém-se nem a morte poderá mudá-la.