Carta Vária, porquê?



quarta-feira, 14 de março de 2012

SÍRIA - Ou quem põe o guiso no gato?

Cidade antiga de Bosra- património da humanidade



Uma fábula muito antiga conta que os ratos, cansados ou desesperados por serem caçados por um gato, resolveram pôr-lhe um  guiso no pescoço, para que ele não mais os pudesse surpreender. Todos estavam de acordo com a decisão. Foi então que um rato mais experiente perguntou: - mas , quem põe o guiso no pescoço do gato?
É à espera desta resposta que se encontram o imperialismo norte-americano, a NATO, a Liga Árabe, a Al-Qaeda, e todos os "ditos amantes da liberdade e defensores da democracia". A cada dia que passa, acham mais urgente pôr o guiso no pescoço do gato. Mas quem se atreve a pô-lo?
Para que não restem dúvidas sobre a minha posição pessoal e política a respeito do que deve ou não deve, pode ou não pode fazer-se em relação ao conflito sírio, quero deixar bem claro que não estou de acordo com o regime sírio, com a ditadura pessoal dos Assad (pai e filho) e também com o partido Baas (partido pan-árabe socialista).Igualmente me distancio da autodenominada resistência síria, quer pelos verdadeiros objetivos que a movem, quer ainda pelos apoiantes que a sustentam, países e organizações belicistas.
A Rússia e a China, ainda que por razões diferentes, obstaram a que os planos  da NATO, dos EUA e de Israel se concretizassem. A Síria, como um gato de guizo no pescoço transformar-se-ia num animal doméstico. A Rússia, se outras perdas não tivesse, perderia a sua base naval no mediterrâneo oriental, de onde vigia as atividades da NATO na região, perderia também um comprador de armas e veria ameaçado o seu projeto de voltar a ser uma grande potência militar a nível  mundial e veria diminuir ainda o poder que tem nas Nações Unidas. Já a China, que não tem interesses militares e económicos na região, arriscava-se a perder prestigio nas repúblicas muçulmanas da Ásia Central, prestigio e poder negocial, abriria mão, sem quaisquer vantagens, da oportunidade de exercer a sua diplomacia, numa área do mundo, hoje fulcral para a paz mundial.
A grande questão, aquela que terá de ser respondida é o que acontecerá na Síria, quando os problemas atuais, estiverem ou parecerem estar resolvidos. É que a Síria não é um país qualquer. Não! Esse espaço político e físico que hoje se denomina Síria e Líbano, ao longo de centenas e centenas, milhares e milhares de anos de história foi o berço de civilizações, o nascedouro de múltiplas culturas, o campo de batalha onde se enfrentaram e fundiram e multiplicaram  religiões que, depois de enraizadas, deram origem ao colorido e contrastante tecido cultural e religioso atual.
Por isso, quem se propuser "implantar a democracia" na Síria, tem de estar preparado para a eventualidade, mais que provável, de transformar esse projeto numa guerra sectária com efeitos devastadores em toda a região. Sendo assim, só a negociação paciente, justa e laboriosa, balsâmica, pode trazer a paz à região, sarando feridas profundas, apagando ódios e injustiças antigas e atuais. E, em jeito de reflexão desta "crónica" , quero recordar um preceito antigo, mas sempre atual: a paz é fruto da justiça.

terça-feira, 6 de março de 2012

Esta estória que vos conto: Santa Cruz, na Fortaleza

Meados de 1977.Talvez Maio, Junho ou Setembro. Não me recordo. "Seu" Zezinho, o chefe da carceragem, pediu-me para passar lá, pois tinha uma encomenda para me entregar. Fora, disse-me ele, um Senhor da Embaixada de Portugal (Jacinto Rego de Almeida) que ma deixara.
Voltei para a minha cela e lá abri o pacote. Continha jornais portugueses, entre eles o Expresso e uma cassete com músicas de um cantor, que eu desconhecia, chamado José Afonso. Coloquei a cassete num gravador e fui ouvindo, não sem estranhar os temas e, sobretudo o seu engajamento político. Aquilo era diferente de tudo o que até então tinha ouvido. Só encontrava paralelo na música latino-americana de intervenção.
Quando o gravador começou a debitar a última música, achei que não estava a ouvir bem. Rebobinei a fita , acomodei-me na cadeira onde estava sentado, carreguei no botão e comecei a ouvir de novo:
"Baía de Guanabara
Santa Cruz na Fortaleza
Está preso Alípio de Freitas..."
Com o coração apertado, a emoção a subir-me pela garganta, as lágrimas a quererem saltar-me  dos olhos, cobri o rosto com as mãos e quando o gravador se calou, encostei a cabeça na mesa de cimento à minha frente e chorei, chorei, até as lágrimas secarem. Afinal nunca estivéramos sós na dura e aparentemente interminável guerra que travávamos contra a ditadura militar. Muitos, muitos e em muitos lugares do mundo estavam a lutar connosco.
À noite, depois de jantar, na sala de convívio, todos os que ali, na Frei Caneca(Rio de Janeiro), estávamos presos, escutámos o Zeca. Quando, porém, a "minha cantiga"começou, todos os que estivemos na "batalha" da Fortaleza de Santa Cruz, fomos possuídos pela inabalável certeza de que foi ali que a ditadura militar começou a ser derrotada.
O Zeca foi a Voz que denunciou a opressão e o arauto que anunciou ao mundo o triunfo de uma liberdade até então oprimida.
Quando em Fevereiro de 1979 saí da prisão, depois de 10 anos de uma  luta sem tréguas contra um sem número de sentenças iníquas e depois que todos os presos políticos foram libertados( muito a custo, diga-se), vim a Portugal para observar o que por cá se passava e, sobretudo, conhecer o Zeca. Encontrámo-nos no pavilhão Carlos Lopes, onde se realizaria um concerto de apoio às lutas revolucionárias da América Latina. A impressão que eu tive então, foi a de que o Zeca e eu sempre estivéramos juntos, que nos conhecíamos desde sempre e que , a partir daquele dia, não haveria mais ausências. E foi isso mesmo que aconteceu.  Regressei ainda ao Brasil, voltámos a estar juntos em Moçambique e depois de novo em Portugal. Nunca mais , até hoje, nos perdemos um do outro. Quantas estórias nós contámos, quantos propósitos formulámos juntos, sobre quantas coisas em que tínhamos dúvidas nos interrogámos.
Quando resolveu partir , o Zeca fê-lo como um rei. Passeou-se pelo meio do seu povo, que o chorou, que o aplaudiu e o cantou. Alguns, poucos, pensaram que não mais voltaria, mas o povo que o amava bem sabia que isso não aconteceria porque algum dia seria necessário "sair para rua gritar", porque os vampiros "bebem o vinho novo e dançam no pinhal do rei", querendo "comer tudo"e também porque os "meninos nazis" que se tinham fingido de mortos, logo que o tempo lhes fosse favorável reivindicariam os seus direitos de filhos da puta.
P.S.À atenção de todos os "cipaios" de todas as TROIKAS:"fascistas da mesma igualha/ao tempo Carlos Lacerda/sabei que o povo não falha/seja aqui ou noutra terra."Foi também o Zeca quem cantou um dia "o povo é quem mais ordena".Estas palavras tiveram eco e transformaram-se em Revolução.





quinta-feira, 1 de março de 2012

20º Aniversário da Casa do Brasil de Lisboa



Já, por mais de uma vez, o desejo de ter o dom da ubiquidade me assaltou. Hoje é apenas mais um desses dias. É que eu bem queria estar, aí, na Casa do Brasil, comemorando o seu vigésimo aniversário, e aqui, onde me encontro, na Sociedade Portuguesa de Autores, na homenagem que aqui se presta ao Duda Guennes, também ele sócio da primeira hora da CBL. Aliás, o Duda não foi um sócio qualquer. Como membro activo dessa Casa, o Duda embrenhava-se em todas as sua lutas e actividades, estava sempre na primeira linha de todas as suas iniciativas. Essa, era, verdadeiramente, a sua casa. Espero que hoje, lhe guardem  uma cadeira, na fila da frente, no centro, como se ele estivesse aí para assistir a uma Final da Copa do Mundo de futebol.
Também por mim, aqui e agora, quero reafirmar que a casa do Brasil de Lisboa é a minha casa. E esse sentido de pertença jamais alguém mo poderá tirar. Nem sequer, eu mesmo, a ele poderei renunciar porque ninguém pode negar ou apagar uma parte da sua vida.
Quero dizer-vos ainda, que apesar das minhas andanças por outras militâncias, em qualquer lugar do mundo onde eu me encontre, e eu continuo andarilho, a primeira coisa que se me oferece dizer, quando alguém me pergunta o que faço, é repetir que sou membro da casa do Brasil e, se necessário, membro fundador. Quero também comunicar-vos que já tomei a decisão de estar mais presente, a partir de agora, nas coisas que se passam nessa minha Casa.
Das razões que levaram à fundação da Casa do Brasil, da sua luta pela sobrevivência, do combate diário pelos direitos dos emigrantes brasileiros e lusófonos, direitos esses que nem os países de origem pareciam estar interessados em reconhecer e apoiar, da construção de pontes culturais permanentes entre as várias comunidades, do esforço para trazer não só lusófonos para apoiar as nossas causas, de tudo isso e do muito que aqui não se enumerou, alguém vos há-de falar.
Durante estes 20 anos, muitas pessoas , todas importantes, passaram pela CBL, deixaram a sua colaboração e marcaram a sua presença. Mas há uma que mais do que qualquer outra marcou a vida desta Casa porque a reconheceu como um pedaço do Brasil. Refiro-me ao embaixador José Aparecido de Oliveira que se abriu e abriu esta casa à diplomacia brasileira e sempre contou com ela em todas as ocasiões em que foi necessário travar combates pelo Brasil. Foi ele quem disse que a Casa do Brasil, nos momentos em que aqui foi preciso lutar, foi o "braço armado" da Embaixada e da causa dos emigrantes.
Finalmente, quero fazer um apelo a todos os que por aqui passaram, que com esta casa colaboraram, e  por variados motivos dela se foram afastando, que regressem porque a sua presença é tão necessária hoje como foi ontem. A CBL terá de continuar a ser o  lugar onde todos os brasileiros, que aqui residem ou por aqui passam, poderão encontrar acolhida. Mais ainda. Hoje , a necessidade da construção do mundo lusófono é um dado adquirido e aceite por todos. A Casa do Brasil de Lisboa tem de constituir-se  no verdadeiro centro da construção da lusofonia em Portugal
A todos aqueles que mantiveram e mantêm alta a bandeira da Casa do Brasil de Lisboa, sem nenhuma excepção, um grande e fraternal abraço e um até já.