Carta Vária, porquê?



sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Pequenas histórias da memória


 
Dr. Benês

Quando em 1962 , sem permissão do meu Bispo, fui a Moscovo assistir ao  Conselho Mundial da Paz, tive ocasião de lá encontrar pessoas que já faziam parte da História , como Krutchev, a quem condecorei com uma enxadinha das Ligas Camponeses, tendo-o encontrado mais tarde, já para uma longa conversa, no parque Lenine, quando  ele passeava com duas netas(ou netos); Gagarin  que  a todo o custo me queria cumprimentar dando-me  um beijo na boca;  e outras, como La Passionaria, Pablo Neruda e diversos patriarcas ortodoxos e bispos católicos. Celebrei, também, a convite do Arcebispo de Moscovo, missa católica, na Igreja de S .Luís dos Franceses, à qual assistiu quase toda a delegação brasileira e muitos russos, para quem aquela missa era uma novidade. Foi também o Arcebispo de Moscovo que me convidou, depois da celebração da missa católica, para uma celebração ortodoxa na sua Catedral, com o coro do Bolshoi.
Fiz também uma amizade muito especial com um Ministro da então Checoslováquia, o Dr.Benês, pessoa com quem passei  a me encontrar sempre que estive no seu país.
O Dr. Benês era uma pessoa singular, sempre bem-disposta, e capaz de transformar as piores situações em coisas banais. Um dia, convidou-me para ir almoçar num restaurante perto de Teresin, uma antiga fortaleza militar, mandada construir por Maria Teresa de Áustria e transformada pelos alemães em centro de triagem de prisioneiros, onde morreram cerca de 75.000 pessoas. Como o restaurante onde devíamos almoçar não ficava longe, antes mesmo do almoço, o Dr. Benês fez-me a proposta de visitar a Fortaleza. Aceitei. Logo à entrada, alinhados contra parede havia uma série de beliches de madeira, onde em cada um podiam dormir três ou quatro pessoas. A certa altura o Dr.Benês virou-se para mim, apontou um desses beliches e disse , dando uma grande gargalhada: “este aqui era onde eu dormia, ali, naquele era onde dormia o Ministro da saúde. Logo a seguir dormia o Bispo de”(cidade cujo nome não recordo) e assim por diante. Levou-me depois ao local da Secretaria, à sala dos interrogatórios, e, finalmente, ao saguão onde existiam ainda quatro fornos crematórios. À medida que me ia mostrando toda esta tragédia, o Dr. Benês estava bem-disposto, assobiava, cantarolava, enquanto eu estava cada mais deprimido. Foi assim que eu lhe disse: “Benês, como é que você tendo estado aqui e sofrendo o diabo à mão desses bandidos nazistas, respira tanta alegria, e eu que nunca passei por aqui sinto-me agoniado, tal qual um cão escorraçado?”.Ele parou de assobiar e cantarolar, olhou-me fixamente, de frente, e disse-me muito sério: “Olhe, quando estou triste ou aborrecido, venho aqui e a tristeza e o aborrecimento logo me passam. Mas quando não posso livrar-me desse mal-estar angustiante, vou até Dachau para onde fui para ser executado e só não o fui porque os americanos chegaram. Então sinto-me novo como quando era jovem. Eu devia estar morto, mas estou vivo. Entende agora porque é que eu canto e assobio? É preciso estar diante da morte para se saber o valor da vida”.

Pequenas histórias da memória


Morreste-me Fidel, mas Cuba viverá por ti.

Então, Fidel, vais embora, não avisas ninguém? Devias ter-te recordado que já não estavas na clandestinidade, que muitas e muitas pessoas queriam saber noticias tuas, todos os dias, pessoas que te amavam com grande fervor. Todos sabíamos que a tua saúde estava periclitante mas, mesmo assim, achávamos que, pelo menos até aos cem, tu te aguentarias nas canetas. De qualquer modo, como sei onde estás, sempre que eu quiser, falarei contigo. Tenho ligação direta com a constelação da Utopia, onde tu agora moras. Mas, antes que me esqueça, vou contar-te uma pequena história que me deu a conhecer Cuba, tinha eu uns sete anos.

Lá, em Vinhais, uma vila do Norte de Portugal, perto da Galiza, onde eu fui criado, morava um cubano, já velhinho, chamado Catalino. De Cuba ele só tinha a memória, pois a sua mãe D. Catalina, tinha vindo para Galiza e depois para Portugal para que o filho não fosse mobilizado pelo exército espanhol para lutar contra o seu povo. Por isso, da Galiza, mudou-se para Vinhais. Nunca aprendeu a falar direito o português, nem foi para a escola, e a sua profissão era carregar as malas dos caixeiros-viajantes, de um estabelecimento comercial para outro. Tinha uns grandes bigodes, recordo-me bem. Para transportar as malas usava um carrinho. Quando ficou velho o peso do carrinho e das malas já lhe custavam muito esforço. Então, nós os meninos ajudávamo-lo empurrando o carro. Em troca, quando não tinha de entregar malas, juntava-nos em qualquer lugar e contava-nos muitas histórias, todas relacionadas com Cuba. Sobretudo histórias das guerras que os cubanos travavam contra os espanhóis para se tornarem independentes. As pontas do bigode alçavam-se-lhe e os olhos brilhavam-lhe com muita emoção. A tristeza vinha depois quando tinha que nos dizer que Cuba não se havia libertado.
Quando morreu, pobre como sempre vivera, o padre Miguel, um mestiço moçambicano, quis que ele tivesse um grande funeral. Mobilizou a garotada e também as pessoas grandes e assim, o tio Catalino, teve o enterro de um rei. Até um fato novo vestiu. O único! As pessoas eram tantas que os que viam passar o enterro perguntavam quem tinha morrido. Quando respondiam: “o tio Catalino”,arregalavam os olhos e diziam: “ele bem que merecia!”.

Quando eu em Cuba, me hospedei no hotel Nova Iorque, em Havana Velha, senti que estava em casa, pois os nomes das ruas, e a arquitetura da cidade já eu as tinha na cabeça. Condiziam com as histórias do tio Catalino. Fiquei muito feliz e até chorei de alegria e tive uma imensa saudade dele.

Já eu no Brasil, quando era Director do “Jornal do Maranhão”, não sabendo ainda quem venceria a em Cuba, publiquei um pequeno texto que terminava assim: “debaixo dos céus de Cuba, trava-se uma luta liliputiana. Uma luta pela liberdade”.
O meu amor por Cuba começou com as histórias do tio Catalino e foi-se aprofundando à medida que a guerra avançava em Cuba, agora contra os norte-americanos.. Essa guerra que me pareceu no princípio liliputiana, tornou-se realmente uma guerra pela liberdade.Fiz dela o modelo da minha vida revolucionária e foi da Sierra Maestra que foram descendo os meus capitães: Fidel, Raúl, Che Guevara, Camilo Torres.
Morreste-me Fidel, mas Cuba viverá por ti.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Pequenas histórias da memória


Quando o Papa Francisco foi eleito, o que criou uma grande surpresa entre os vaticanistas, entendi que, apesar de todos os anos que passei na Argentina nunca me interessei pela atividade da sua igreja que, ao tempo, me parecia nula em relação à atuação dos generais que mantinham sob tacão o povo argentino e foram autores e cúmplices de crimes contra a humanidade, alguns dos quais, até hoje não foram punidos.

Nunca vi o Papa Francisco mas não perco a esperança de vê-lo e até falar com ele, nem que seja só por momentos. Não quero contar-lhe o que foi a minha vida como sacerdote mas quero parabenizá-lo por tudo o que tem feito pela igreja de que é Pontífice. Contar-lhe o que foi a minha vida como sacerdote levaria muito tempo, tempo esse, que não posso roubar a todos os fiéis que ele tem à sua guarda. Conto-o aqui. Mesmo levando em conta que nem todos a quem eu queria chegar lerão estas linhas.

Depois de quatro anos no Brasil ao serviço da Universidade do Maranhão e da diocese de S. Luís, entendi que a minha missão não era essa, que a minha missão era trabalhar com os pobres, tantos eles eram nessa cidade. Ali conheci a verdadeira miséria. Assim, saí do Palácio arquiepiscopal e fui morar numa favela , o Matadouro, igual a tantas outras que havia em S. Luis. A minha paróquia era constituída por três favelas: O Matadouro, a Floresta e o bairro da Fé em Deus. Mudei-me de armas e bagagens e comecei a minha nova vida. Como a assistência religiosa é quase nenhuma nas favelas, comecei por reunir alguns conhecidos que tinha por lá e começámos a discutir o que fazer. Discutimos, discutimos e vi que lhes faltava tudo a que a dignidade diz respeito. Em nenhum dos bairros havia escola ou qualquer lugar de assistência médica. Mas essas duas questões foram reivindicações que logo se puseram. Todos queriam escola para os seus filhos e um médico que lhes desse assistência, porque   tanto a escola como o hospital ficavam longe. Assim, construíram-se três barracos de pau a pique e cobertos de palha, como eram as nossas casas, só que maiores, e nomearam-se professores, alguns daqueles que sabiam ler e escrever, sem qualquer promessa de salário. Para resolver o problema dos médicos, falei com dois médicos amigos, ambos comunistas, que todas as semanas passavam nos ambulatórios improvisados e atendiam as pessoas que lá se podiam deslocar. Caso não pudessem, eles mesmos iam a casa dos doentes. Salário zero.

O tempo foi passando até que fui chamado ao Arcebispo. Ele disse-me que sabia que eu até á data ainda não tinha rezado missa, nem feito qualquer outro serviço religioso. Perguntou-me porquê e eu respondi que as populações ainda não tinham pedido e que também não tinha havido tempo, tal era urgência das suas necessidades humanas. Mas que em breve tudo se regularizaria nesse sentido.

A capela de Sto Expedito, a única na paróquia, era demasiado pequena para que todos assistissem à missa dominical. Resolvemos então fazer o levantamento de todas as ruas da paróquia e determinar que a obrigação de missa dominical passavam a ser num dia determinado da semana. Assim, a rua A,B, C, assistiriam no sábado; As ruas D, E, F, assistiriam na segunda-feira; as ruas G, H, I assistiriam na terça – feira e assim por diante. Os domingos seriam destinados somente às crianças. Além do mais, os horários do culto eram sempre de tarde, uma vez que a absoluta maioria dos favelados trabalhava. Por decisão da comissão e de outros mais, os atos de culto seriam todos em Português, incluindo a missa, pois, como eles diziam, Deus deveria compreendê-lo. Aboliu-se a confissão individual; os pobres têm poucos pecados, ou nenhuns. Todos os que estavam na capela rezavam em voz alta a oração da Confissão e eu como sacerdote dava uma absolvição geral. Todas as pessoas que pudessem deveriam assistir aos batizados porque como eu lhes dissera, este era o ato mais importante da vida de um cristão. Aboliu-se o jejum e a abstinência, uma vez que sendo todos pobres, não havia necessidade de tais sacrifícios, pois, por necessidade, jejuavam todos os dias. As festas religiosas, as que já havia e outras que nós criámos, realizavam-se na rua que ia ter à capela porque era a mais larga e central de toda a paróquia. Cada um levava o que tinha em casa para comemorar a Festa, colocava-o numas mesa diante da capela e assim todos participavam da comemoração. É claro, que todas estas mudanças começaram a se divulgar nos outros subúrbios onde os sacerdotes continuavam a tradição.

Na capela, antes dos ofícios religiosos e depois, se alguém tinha dúvidas, discutiam-se e resolviam-se todos os problemas referentes à população do bairro. Também não havia dinheiro para pagamentos de serviços, pois sendo todos nós pobres, tínhamos de fazer da solidariedade a nossa moeda de pagamento.

Devo acrescentar ainda que a comunidade protestante que existia na paróquia, um dia veio ter comigo e pediu-me autorização para frequentar a igreja como os outros moradores da paróquia. Fizemos uma grande festa em sua homenagem e a comunidade sentiu que era bem-vinda.

Como não podia deixar de ser o arcebispo chamou-me um dia, de novo,  ao Palácio porque queria saber o que estava a acontecer naqueles bairros. Eu contei-lhe sem nada omitir e ele disse-me apenas que alguns padres tinham ido protestar à Cúria por ele não ter tomado nenhuma providência em relação a mim. Perguntei-lhe o que pensava ele mesmo sobre esse assunto, uma vez que nunca tinha ido lá e respondeu-me: não sei, nem quero saber! Perguntou-me ainda como é que eu vivia. Eu respondi-lhe que vivia como todos os meus paroquianos, numa casa de pau a pique, coberta de folhas de palmeira e com uma única divisão. Os meus móveis eram uma rede e um caixote onde punha alguns livros. Comia aqui e ali, um “chibezinho” de vez em quando.

Um dia, apareceram na cidade grandes cartazes que diziam: venham assistir ao Natal na Floresta que lá é diferente. Tinha sido o pessoal do Jornal do Povo onde eu trabalhava que os fizeram. Este cartaz foi a última gota de água na paciência do Arcebispo. Sem que eu lhe pedisse nomeou-me para outra paróquia e mandou para aquela minha um padre que nunca lá pôs os pés, soube disso mais tarde. Aceitei a vontade do Arcebispo, mas quis marcar aminha saída de forma inesquecível. Realizei o Natal na rua. Toda ela engalanada com mangueirinhas, faixas e cartazes. Todas as pessoas vestiram as suas melhores roupas e eu fiz um batizado que nunca esquecerei. A Dilma montada num jumento, como Nossa Senhora, trazia o seu filho, de poucos dias , ao colo, embrulhado numa manta branca. Puxando o jumento, vinha o marido vestido com uma túnica comprida. Quando a Dilma chegou às portas da capela, desceu do jumento e pôs o menino num berço ali colocado. Ouviram-se palmas, muitas palmas. Com grande emoção todos foram beijar o pé do menino. Aí entraram os do “bumba meu boi”, o  povo cantou e dançou e  a festa foi até de manha, quando se recolheram às suas casas. Tinha gente de outros bairros, muita gente. Alguns choraram, abraçaram-se, pediam-se desculpas. As estrelas do céu brilhavam com mais fulgor.

A seguir, eu fui ao meu barraco, e sem me despedir de ninguém, embrulhei a minha rede, peguei nos poucos haveres e, acompanhado do Augusto, fui para sua casa. Passei por Pernambuco, fui para o Rio de Janeiro e daí para a União Soviética, já desligado da Igreja.

Só voltei à Floresta 30 anos depois. Estava a conversar com umas pessoas quando alguém me tocou. Era um moço negro, alto e bonito que me disse: Boa tarde, meu padrinho. Eu sou o Jesus, o menino do presépio.

Alípio de Freitas

 

 

domingo, 16 de outubro de 2016

Pequenas histórias da memória

Cheguei ao Brasil num dia de carnaval, em Recife. Cheguei e converti-me, para sempre a esse país. Para sempre. Depois de alguns dias na capital do frevo embarquei para s Luís do Maranhão onde D. Delgado,  o Arcebispo de então,  me recebeu carinhosamente. Luís era então uma cidade gentil , mediana,  com aspeto colonial.  O meu destino era a Universidade de S. Luís, onde por alguns anos leccionei . Mas S. Luís não era apenas uma cidade colonial era também uma cidade onde as lutas operárias já se faziam sentir, grande parte da sua população morava em casas de barro e palha, construídas no mangue, onde a pobreza era uma marca indefectivel  no seu contexto diário. Apesar disso a alegria de viver aparecia em todo o seu tecido social quer no carnaval quer nas festas joninas quer nos grupos de bumba meu boi quer em associações de caracter longinquamente cultural.Foi a sua estrutura sociocultural que me arrancou à
Universidade e me jogou no mangue , nas casas de barro  pau a pique e palha de palmeira. Nas ruas lamacentas, na falta de escolas primárias e na indiferença dos poderes que deviam minorar ou mudar este estado de abandono da grande maioria do seu povo. Deu-se então a minha nova conversão ao Brasil. Deixei a Universidade, peguei os meus poucos haveres e fui morar num desses bairros pobres de ruas sem calçamento, de gente sem trabalho, de todo o povo sem qualquer tipo de assistência. Foi uma surpresa geral para os meus colegas de profissão e para os meus novos vizinhos dos “alagados”. Padre era coisa que por ali não se via, não porque não houvesse lá o que fazer mas porque a cidade colonial era mais condizente com o estado social e talvez até com a sua vocação. Foram tempos difíceis em que tudo teve que ser criado com os moradores e algumas pessoas da cidade colonial. Tudo! Desde as escolas ao centro de saúde, aos poucos hábitos religiosos. Descobriu-se que a solidariedade era um valor e que ninguém estava só no mundo pois sempre havia uma mão a seu lado. Ninguém foi dispensado de participar nessa obra. Ninguém. As festas que antes eram particulares passaram a ser de toda a rua ou até do bairro. A missa dominical de que eles já tinham ouvido falar nas aldeias de onde vieram tornou-se um momento de celebração coletiva onde tudo se discutia, aprovava e cumpria. Assim,  a assistência aos velhinhos, a frequência da escola primária, a preocupação com o trabalho e até o bem-estar material de cada um eram assuntos  discutidos na hora na missa dominical de que todos participavam, rua por rua A minha “conversão” ao Brasil continuava. É claro que estas mudanças, ou estas novidades trouxeram consigo invejas que nós não prevíamos, críticas que nada tinha a ver com a realidade mas a união entre todas reforçava-se dia a dia. Pessoas de outras paróquias vinham á nossa paróquia não só para ver como era mas também para participar porque a missa, um batizado, um casamento tinham uma mística que não existia nas suas paróquias. Até a igreja evangélica que existia na paróquia se dissolveu  e começou a participar com todo o direito nas nossas ações religiosas e de carater cultural. A autoridade eclesiástica manteve-se calada durante algum tempo mas pressionada por gente da igreja  e de outos sectores sociais da cidade viu-se obrigada a intervir sob a alegação de que nós estávamos ultrapassando as normas da igreja. Em primeiro lugar todos os atos de culto eram em português: a missa, as leituras, a pregação. Tudo tinha a participação ativa de todos os crentes. A rua era o lugar escolhido para todas as manifestações religiosas ou outras que a população desejasse fazer. Quem discordou desta nova igreja e quis manter os seus laços com a igreja tradicional mudou de favela voluntariamente. Ao fim de algum tempo a paciência da autoridade eclesiástica acabou.Eu teria de mudar de paróquia, ou voltar à Universidade. Eu, porém, tinha um compromisso comigo mesmo e com o Brasil que assumira quando me converti ao Brasil. Peguei a minha rede e os meus poucos haveres e sem me despedir de ninguém, morei alguns dias com um antigo companheiro de luta e depois ingressei em definitivo nas Ligas Camponesas.
Esta é uma história que se escreve com muitos outros episódios, e que vão desde a prisão à tortura e termina com a minha quase expulsão do Brasil pois o país que eu amava e amo declarava-me apátrida.
Apesar disso aminha conversão mantém-se nem a morte poderá mudá-la.

 

 

sábado, 4 de junho de 2016

Ainda o golpe no Brasil...



Há dias participei numa conferência sobre o Brasil na Universidade Lusófona, na qual estiveram presentes um professor do Sindicato de professores e pessoas indiferenciadas da sociedade brasileira que vive e estuda por aqui. É claro que as opiniões foram várias, o debate foi muito acesso e participaram dele muitas pessoas. O Brasil está na ordem do dia, não por bons motivos, mas por motivos quase fúteis. As Olimpíadas talvez tenham mais importância no momento do que o que se passa no Brasil em termos políticos e institucionais. Parece que tudo está resolvido com uma nomeação para presidente do Temer que eu creio está muito temeroso em relação ao cargo que lhe mandaram ocupar. Ele não sabe se vai, se fica, se caminha para a frente ou se vai de marcha à ré. Vai esperando.

Mas começando pelo princípio: todo o mundo sabe, no Brasil, ou parecia saber, que a Dilma estava a prazo. Fizeram tudo para que assim parecesse e acontecesse. Quem? Os mesmos de sempre. Os golpistas tradicionais que sempre estiveram em todos os golpes desde que o Brasil é Brasil. O latifúndio, especialmente e, agora, o latifúndio e os norte – americanos. Como sabeis, o Brasil foi uma não-colónia que se transformou num não pais. Napoleão ameaçou o rei D. João VI e, este, mais do que depressa embarcou para o Brasil com todos os seus amigos e a comandita que o rodeava.O Brasil foi retalhado em marquesados, condados e outros títulos de nobreza que era aquilo que  D.João VI  tinha de oferecer aos que o acompanhavam na viagem. Tudo terra para cultivar ou pequenas cidades para administrar. Como os índios já não serviam de mão de obra, começou a importar-se mão de obra africana e aí começa a escravatura no Brasil. Assim, todo o desenvolvimento brasileiro e toda a valorização dos marquesados etc, deu-se em cima dos escravos que eram quem trabalhavam a terra, as minas, e tudo o que fosse esforço laboral. Toda a riqueza que o Brasil produzia em parte ia para a Metrópole e para Inglaterra. Houve várias revoltas de escravos mas todas fracassaram, ou porque eram mal organizadas ou porque os senhores estavam perfeitamente preparados para combate-las. Houve fugas de escravos que duraram cem anos., chegando a construir cidades, como Palmares, que depois foram destruídas pelos poderes reais e dos latifundiários. Em determinada altura do governo de Portugal, já que o Brasil era uma Colónia, os liberais de Lisboa exigiram a volta do Rei para a capital do chamado Império. Diga-se, em abono da verdade, que D. João VI regressou ao reino com muito má vontade, deixando a Província do Brasil, sob o Governo de D. Pedro I. Mas as ideias liberais tinham entrado profundamente, tanto em Portugal como no Brasil, e D.Pedro teve de regressar a Portugal, depois de renunciar ao trono do Brasil, para defender os direitos da filha, D. Maria II. No Brasil foi proclamada a República. Os generais sucederam-se uns ao outros e , quando se aboliu a escravatura o Império acabou. E, daí, até ao presente momento, pouco mudou no país continuando os senhores de terra, os liberais novos e antigos a governar o Brasil, dando golpes sobre golpes, uns militares, outros civis, até ao presente momento. O que aconteceu no Brasil com a presidente Dilma foi um golpe de Estado.

Os contornos do caso Dilma começam a definir-se logo na primeira posse como chefe da casa civil. Ela aceita este posto no governo já perfeitamente inquinado, sabendo-se que era ali que se praticavam a maioria das fraude das administração pública brasileira. Quando Lula afastou Dirceu já tinha pleno conhecimento do que acontecia ou acontecera por ali. Mas como foi ele o homem que aproximara o PT dos grupos pequeno-burgueses que ajudaram o Pt a assumir o poder, Lula calou-se. Além do mais, quando Lula constitui o seu Ministério, forma-o com pessoas bem estranhas à política brasileira. O Ministro da Fazenda era um homem do Soros, o presidente do Banco de Fomento vinha do Banco de Boston, e havia outros ministros bem estranhos ao mundo do Partido dos Trabalhadores. Por outro lado, os mais eminentes membros do PT ficaram de fora. Por isso, mutos dos apoios que Lula teve na sua eleição passaram a olhá-lo com uma certa desconfiança. Além do mais algumas da promessas eleitorais ficaram por cumprir, ainda que outras muito importantes, o fossem como o salário família. Mas a educação, transportes, saneamento e outras melhorias prometidas ficaram para o próximo governo. Dilma assume o poder com todos esses encargos, assume a seu modo, mas com coragem. Só que a coragem não basta especialmente quando a “entourage “ que a cerca é incompetente. Dilma deu-se ao luxo de ter 32 ministros, possivelmente para a gradar aos partidos com os quais fez coligação. Interveio na escolha de determinados candidatos seus amigos, contrariando aqueles que o partido tinha escolhido. E assim foi-se isolando, isolando, chegando a esta situação de desconforto. E as hienas, que estavam à espreita para atacar no melhor momento, acossadas pelo desvendar das sua tocas corruptas e fedorentas, atacaram sem pudor nem vergonha. Com alarido e com  todos os dentes podres e sujos.

Fique bem claro que aqueles que apoiamos Dilma, continuamos a apoia-la. Reconhecemos nela capacidades para desempenhar o cargo de Presidente da República. Não podemos consentir é que ela seja jogada fora como um trapo imprestável.

 

 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Adeus , Comandante!




 
 

A morte e o funeral do Almirante Victor Crespo passou quase despercebida, tal como se ele fosse um cidadão anónimo. Infelizmente, isso não aconteceu só com ele, vem acontecendo também com outros. Parece que este país e, especialmente os políticos que nos governam, querem esquecer o 25 de Abril, ignorando aqueles que o planearam e possibilitaram. São esses os mesmos que já retiraram do calendário oficial o dia 5 de outubro, data da implantação da República, o dia 1º de dezembro, dia da restauração da independência e ainda outras datas, algumas de caracter religioso mas todas intimamente ligadas à identidade do povo português.

Talvez não demore o tempo em que estes mesmos senhores obriguem o povo português a recordar a data do estabelecimento da Inquisição em Portugal, a data das cortes de Tomar, onde o ouro de Filipe II de Espanha determinou a anexação de Portugal ao reino Espanhol, ou até o dia 28 de Maio de 1926, segundo estes mesmos políticos, data da “revolução nacional”. É só esperar para ver!

Espero que ao menos em Moçambique o Almirante Victor Crespo tenha sido recordado, pois, a sua ação como Alto-comissário foi decisiva para a independência desse país. É bem sabido que os brancos nascidos ou residentes na ex-colónia, a África do Sul, ainda sob o domínio do racismo Boer e a Rodésia do Sul, de Ian Smith se preparavam para transformar Moçambique também num “país branco”. Foi a ação enérgica e determinada do Almirante Victor Crespo que impediu que tal acontecesse. Conheci em Portugal e em Moçambique alguns brancos e mestiços que o odiavam, mas muitos mais que o tinham na consideração de quase um deus. Também em Portugal acontecia quase o mesmo. Leve-se em conta, ainda, que foi a atitude do Almirante Victor Crespo que iniciou a derrota do apartheid, mais tarde consumada em Angola, pelo corpo expedicionário cubano que derrotou definitivamente o exército do apartheid.

Lembrem-se o Presidente da República e este Governo, que apesar das suas atitudes , no mínimo grosseiras, em Portugal sempre haverá quem recorde com saudade , respeito e gratidão o Almirante Victor Crespo.

Alípio de Freitas

Evocação de Zeca Afonso


Nos dias 13 e 20 de Fevereiro, p.p.os  Núcleos da Associação José Afonso de Tavira e de Almada/Seixal, ao festejarem o seu primeiro aniversário,  promoveram  homenagens ao seu patrono, homenagens estas que foram  amplamente participadas e concorridas. Nelas estiveram presentes músicos que foram companheiros do Zeca e alguns que não o tendo sido, o tocam e cantam frequentemente. Estes acontecimentos vêm corroborar a atualidade de José Afonso e sobretudo estar atentos à sua mensagem. Hoje, como ontem, a sua palavra e a sua música são absolutamente atuais e impõem-se pelo seu caracter revolucionário. Ouvir hoje José Afonso é uma necessidade imperiosa, pois é obrigatório despertar as consciências que parecem adormecidas, longe da sua mensagem. É imperioso, portanto, que estes atos se repitam até porque  eles abrem caminho a novas participações , a movimentos de consciência , que possam terminar de vez com  a abulia política e social em que Portugal parece mergulhado.
Também eu te evoco, amigo, no dia em que partiste e me deixaste quase sem chão. Pela tua solidariedade, pela tua dedicação a causas, pela tua grandeza humana, pela tua música que se espalhou por muitos lugares e foi denuncia de uma ditadura cruel que me ia destruindo. A minha, tua cantiga, pode ter contribuído para poupar a minha e muitas vidas. Por isso te serei sempre grato. Obrigado pela vida que nos deste.
Por fim quero agradecer aos Núcleos de Tavira e Almada/Seixal e a todas as pessoas que tendo participado desta evocação de José Afonso, me quiseram homenagear recordando o meu caminho no sentido da libertação dos povos. Eu, gostaria de dedicar esta homenagem a todos os meus companheiros que lutaram e morreram incógnitos na sua luta por um mundo melhor.

 
Registo aqui dois testemunhos de amigos, cujas palavras eu não mereço, mas eles merecem que eu agradeça e registe o seu carinho e amizade.
 
De José Fanha:
Querido Alípio, companheiro imprescindível dos pobres e dos poetas, 
Já te disse e repito outra e outra vez:   tu és o a pai que eu gostava de ter tido.
Mas creio que se fosse teu filho não teria recebido   das tuas mãos com menos emoção esse amor à liberdade e à justiça, essa rebeldia perante os poderosos, essa  limpeza de olhar capaz de varar ditadores e carrascos, esse abraço solidário que une os pobres da Terra numa profunda e maravilhosa humanidade.
Querido Alípio 
Desculpa não estar hoje aí ao teu lado. 
Mas permite-me que te diga: bem hajas por cada dia que nos dás. JFanha
De Vladimir José Roque Laia:
Conhecem vocês hoje um Homem excepcional, daqueles com quem nos cruzamos, ao longo da vida, raramente. Digo isto porque tem, e mantem, a postura serena, a simplicidade firme, mas discreta, de quem tranquilamente sabe que, nas suas andanças pelo Mundo, sempre esteve do lado, e ao lado, dos amordaçados, dos injustiçados, dos oprimidos, dos explorados - pelos quais fez ouvir a sua voz e sempre lutou, tendo sofrido duramente na pele, que não no espírito, o arrojo de manter intacta a sua coerência ideológica, filosófica e política. Creio que nisso também consiste a sua honra e a orgulhosa paz interior de que nos apercebemos.
Conheci-o pessoalmente , quando integrámos a comissão política da candidatura do Carlos Marques, então dirigente da UDP, ás presidenciais do ano de 1986, quando finalmente o seu país de origem o acolhera, após 10 anos de duríssima prisão durante a ditadura dos coronéis no Brasil e após ser apátrida, altura em que só o Moçambique de Samora Machel fora o único país que o recebera. Nunca falava de tudo isso, só o presente do que havia a fazer para o futuro interessava, do passado interessavam as lições e as reflexões sobre os acertos e desacertos nos caminhos percorridos. Humanista e activista convicto como era, não pudera deixar de estar numa candidatura cujo lema era "a coragem de ser solidário".
Então como hoje, mantem essa fibra e a mesma coragem - até na luta contra as adversidades, de uma saúde debilitada pelos trabalhos, pelas sevícias e tortura e pela péssima alimentação na prisão, nas quais sempre contou com enorme esteio da sua Mulher.
Ouçam-no, porque vale a pena ouvirem-no, concordem ou não com tudo o que ele diga. Por mim, que lamento não poder estar presente para ouvir, com a estima, admiração e respeito que por ele tenho, envio-lhe um grande e afectuoso abraço,
Vladimir José Roque Laia