Carta Vária, porquê?



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Pequenas histórias da memória


Quando o Papa Francisco foi eleito, o que criou uma grande surpresa entre os vaticanistas, entendi que, apesar de todos os anos que passei na Argentina nunca me interessei pela atividade da sua igreja que, ao tempo, me parecia nula em relação à atuação dos generais que mantinham sob tacão o povo argentino e foram autores e cúmplices de crimes contra a humanidade, alguns dos quais, até hoje não foram punidos.

Nunca vi o Papa Francisco mas não perco a esperança de vê-lo e até falar com ele, nem que seja só por momentos. Não quero contar-lhe o que foi a minha vida como sacerdote mas quero parabenizá-lo por tudo o que tem feito pela igreja de que é Pontífice. Contar-lhe o que foi a minha vida como sacerdote levaria muito tempo, tempo esse, que não posso roubar a todos os fiéis que ele tem à sua guarda. Conto-o aqui. Mesmo levando em conta que nem todos a quem eu queria chegar lerão estas linhas.

Depois de quatro anos no Brasil ao serviço da Universidade do Maranhão e da diocese de S. Luís, entendi que a minha missão não era essa, que a minha missão era trabalhar com os pobres, tantos eles eram nessa cidade. Ali conheci a verdadeira miséria. Assim, saí do Palácio arquiepiscopal e fui morar numa favela , o Matadouro, igual a tantas outras que havia em S. Luis. A minha paróquia era constituída por três favelas: O Matadouro, a Floresta e o bairro da Fé em Deus. Mudei-me de armas e bagagens e comecei a minha nova vida. Como a assistência religiosa é quase nenhuma nas favelas, comecei por reunir alguns conhecidos que tinha por lá e começámos a discutir o que fazer. Discutimos, discutimos e vi que lhes faltava tudo a que a dignidade diz respeito. Em nenhum dos bairros havia escola ou qualquer lugar de assistência médica. Mas essas duas questões foram reivindicações que logo se puseram. Todos queriam escola para os seus filhos e um médico que lhes desse assistência, porque   tanto a escola como o hospital ficavam longe. Assim, construíram-se três barracos de pau a pique e cobertos de palha, como eram as nossas casas, só que maiores, e nomearam-se professores, alguns daqueles que sabiam ler e escrever, sem qualquer promessa de salário. Para resolver o problema dos médicos, falei com dois médicos amigos, ambos comunistas, que todas as semanas passavam nos ambulatórios improvisados e atendiam as pessoas que lá se podiam deslocar. Caso não pudessem, eles mesmos iam a casa dos doentes. Salário zero.

O tempo foi passando até que fui chamado ao Arcebispo. Ele disse-me que sabia que eu até á data ainda não tinha rezado missa, nem feito qualquer outro serviço religioso. Perguntou-me porquê e eu respondi que as populações ainda não tinham pedido e que também não tinha havido tempo, tal era urgência das suas necessidades humanas. Mas que em breve tudo se regularizaria nesse sentido.

A capela de Sto Expedito, a única na paróquia, era demasiado pequena para que todos assistissem à missa dominical. Resolvemos então fazer o levantamento de todas as ruas da paróquia e determinar que a obrigação de missa dominical passavam a ser num dia determinado da semana. Assim, a rua A,B, C, assistiriam no sábado; As ruas D, E, F, assistiriam na segunda-feira; as ruas G, H, I assistiriam na terça – feira e assim por diante. Os domingos seriam destinados somente às crianças. Além do mais, os horários do culto eram sempre de tarde, uma vez que a absoluta maioria dos favelados trabalhava. Por decisão da comissão e de outros mais, os atos de culto seriam todos em Português, incluindo a missa, pois, como eles diziam, Deus deveria compreendê-lo. Aboliu-se a confissão individual; os pobres têm poucos pecados, ou nenhuns. Todos os que estavam na capela rezavam em voz alta a oração da Confissão e eu como sacerdote dava uma absolvição geral. Todas as pessoas que pudessem deveriam assistir aos batizados porque como eu lhes dissera, este era o ato mais importante da vida de um cristão. Aboliu-se o jejum e a abstinência, uma vez que sendo todos pobres, não havia necessidade de tais sacrifícios, pois, por necessidade, jejuavam todos os dias. As festas religiosas, as que já havia e outras que nós criámos, realizavam-se na rua que ia ter à capela porque era a mais larga e central de toda a paróquia. Cada um levava o que tinha em casa para comemorar a Festa, colocava-o numas mesa diante da capela e assim todos participavam da comemoração. É claro, que todas estas mudanças começaram a se divulgar nos outros subúrbios onde os sacerdotes continuavam a tradição.

Na capela, antes dos ofícios religiosos e depois, se alguém tinha dúvidas, discutiam-se e resolviam-se todos os problemas referentes à população do bairro. Também não havia dinheiro para pagamentos de serviços, pois sendo todos nós pobres, tínhamos de fazer da solidariedade a nossa moeda de pagamento.

Devo acrescentar ainda que a comunidade protestante que existia na paróquia, um dia veio ter comigo e pediu-me autorização para frequentar a igreja como os outros moradores da paróquia. Fizemos uma grande festa em sua homenagem e a comunidade sentiu que era bem-vinda.

Como não podia deixar de ser o arcebispo chamou-me um dia, de novo,  ao Palácio porque queria saber o que estava a acontecer naqueles bairros. Eu contei-lhe sem nada omitir e ele disse-me apenas que alguns padres tinham ido protestar à Cúria por ele não ter tomado nenhuma providência em relação a mim. Perguntei-lhe o que pensava ele mesmo sobre esse assunto, uma vez que nunca tinha ido lá e respondeu-me: não sei, nem quero saber! Perguntou-me ainda como é que eu vivia. Eu respondi-lhe que vivia como todos os meus paroquianos, numa casa de pau a pique, coberta de folhas de palmeira e com uma única divisão. Os meus móveis eram uma rede e um caixote onde punha alguns livros. Comia aqui e ali, um “chibezinho” de vez em quando.

Um dia, apareceram na cidade grandes cartazes que diziam: venham assistir ao Natal na Floresta que lá é diferente. Tinha sido o pessoal do Jornal do Povo onde eu trabalhava que os fizeram. Este cartaz foi a última gota de água na paciência do Arcebispo. Sem que eu lhe pedisse nomeou-me para outra paróquia e mandou para aquela minha um padre que nunca lá pôs os pés, soube disso mais tarde. Aceitei a vontade do Arcebispo, mas quis marcar aminha saída de forma inesquecível. Realizei o Natal na rua. Toda ela engalanada com mangueirinhas, faixas e cartazes. Todas as pessoas vestiram as suas melhores roupas e eu fiz um batizado que nunca esquecerei. A Dilma montada num jumento, como Nossa Senhora, trazia o seu filho, de poucos dias , ao colo, embrulhado numa manta branca. Puxando o jumento, vinha o marido vestido com uma túnica comprida. Quando a Dilma chegou às portas da capela, desceu do jumento e pôs o menino num berço ali colocado. Ouviram-se palmas, muitas palmas. Com grande emoção todos foram beijar o pé do menino. Aí entraram os do “bumba meu boi”, o  povo cantou e dançou e  a festa foi até de manha, quando se recolheram às suas casas. Tinha gente de outros bairros, muita gente. Alguns choraram, abraçaram-se, pediam-se desculpas. As estrelas do céu brilhavam com mais fulgor.

A seguir, eu fui ao meu barraco, e sem me despedir de ninguém, embrulhei a minha rede, peguei nos poucos haveres e, acompanhado do Augusto, fui para sua casa. Passei por Pernambuco, fui para o Rio de Janeiro e daí para a União Soviética, já desligado da Igreja.

Só voltei à Floresta 30 anos depois. Estava a conversar com umas pessoas quando alguém me tocou. Era um moço negro, alto e bonito que me disse: Boa tarde, meu padrinho. Eu sou o Jesus, o menino do presépio.

Alípio de Freitas