A praça é do povo
Praça Tiradentes(Ouro Preto)
Finalmente,
e com grande surpresa minha, a imprensa portuguesa começou a preocupar-se com o
Brasil por causa das manifestações que há uma semana vêm ocorrendo naquele
país. Todos os dias chegam informações do correspondente da RTP no Brasil, cuja
competência e conhecimento sobre o Brasil e América Latina não quero aqui
discutir. Mas também os comentadores indígenas têm dado as suas opiniões sobre
o que está a acontecer no país irmão no outro lado do atlântico. Agora já não
são as novelas brasileiras, nem o futebol, nem a corrupção dos políticos, os
pratos fortes dos seus comentários. Devo porém dizer que tanto os comentários
do comentarista da RTP como os dos comentaristas indígenas revelam apenas, e tão-somente,
um desconhecimento total da sociedade brasileira, do processo da sua formação e
do seu começo. Talvez exigir esse conhecimento seja demasiado, mas para que os
comentários tenham alguma credibilidade ele é absolutamente necessário. O Brasil-colónia
criado em meados do séc. XVI foi construído em cima de um binómio que com algumas
diferenças se mantém. É o binómio Casa grande - Senzala. A Casa Grande era o
símbolo e também a forma de exercer o poder político, económico e cultural, em
que se baseava a exploração colonial. A Senzala, por sua vez, era o local onde
se concentrava a força de trabalho, primeiro a dos índios cativos, que por
incrível que pareça eram os donos expropriados da terra e mais tarde os
escravos negros arrancados a África. A comunicação entre a Casa Grande e a
Senzala fazia-se sobretudo através da mestiçagem e mais tarde por meio de
feitores brancos pobres emigrados ou desterrados par a colónia. Esta
organização social, Casa Grande- Senzala, mantem-se com algumas diferenças até
hoje. A Casa Grande continuou ocupada pelos descendentes dos primeiros colonos
e também pelos novos tipos de colonização “banqueiros, traficantes de escravos,
novos donatários, capitalistas de várias matizes, representantes do capitalismo
inglês e depois norte-americano, grupos financeiros autóctones ligados a vários
interesses estrangeiros …”. Na Senzala cabe todo o resto do Brasil, desde os
operários fabris organizados ou avulsos aos camponeses com pouca terra ou sem
terra, aos remanescentes das nações indígenas, todos os pretos e pobres do
país, os desempregados, os sem trabalho, os sem qualificação profissional, a
maior parte, a quase totalidade da “nova classe média” criada pela Bolsa Família
e todos os sectores da classe média proletarizados. Temos assim, de um lado, os
possuidores - aqueles que detêm a quase totalidade da riqueza produzida no
Brasil que são um número reduzido e, do outro, a totalidade do povo brasileiro,
daquele povo que hoje se manifesta nas ruas, não apenas por causa do aumento do
preço dos transportes, mas sobretudo, porque não tem escola, não tem saúde, não
tem trabalho, não tem transportes, mora mal, está ausente do que vulgarmente se
considera cultura, nem se quer lhe resta o futebol, não só porque é caro mas
também porque todos os seu ídolos foram traficados para os clubes europeus.
Convém lembrar a todos aqueles que querem aventurar-se em comentários sobre a
situação no Brasil que este país é aquele onde o fosso entre ricos e pobres é
maior em qualquer lugar do mundo. Assim toda a riqueza se concentra na mão de
uns poucos, todos eles ligados ao capital financeiro internacional ou interesses
da mesma natureza e que são donos dos bancos, de toda a indústria, e de quase
toda a terra disponível, que podem perpetuar sem nenhuma responsabilidade
cívica ou jurídica a escravatura e condenar à fome a parte do povo que lhes
aprouver. É bom lembrar que no Brasil a absoluta maioria da terra é destinada à
criação de gado para exportação, de cana-de-açúcar para produzir combustíveis,
de soja que os brasileiros não consomem e por isso tem outros destinos e
finalidades, de fibras vegetais e de produtos de sobremesa como o chá, café e
cacau. No Brasil um boi tem direito a dois hectares de terra mas há 30 milhões
de famílias camponesas que não têm nem um pedaço onde possam cair mortas.
Quando nós aqui não temos qualquer confiança nos políticos, pois a política
partidária já caiu em descrédito, é preciso ir ao Brasil para saber o que isso
significa verdadeiramente. No Brasil todos os partidos sem qualquer distinção
não passam de valhacoutos onde se abrigam toda a espécie de bandidos,
marginais, traficantes e exploradores do povo. Podem medir-se todos pelo mesmo
raseiro, pois, desde o PT ao PSDB, passando por todos os outros todos, lêem
pela mesma cartilha. Todas as tentativas de devolver o poder ao povo foram
boicotadas para reforçar o sistema partidário vigente, que não passa de uma
partidocracia. Quanto à Justiça, que devia ser um dos pilares da sociedade, ela
está ao mesmo nível dos partidos. É evidente que entre as centenas de juízes
que existem no Brasil há alguns que pautam as suas decisões de acordo com a
ética e a verdade mas, a maioria, tem um preço. É ilusório achar que o Brasil
piorou só porque houve uma mudança de inquilino no palácio do Planalto. É
evidente que Lula e Dilma não têm a mesma origem social, não leram pela mesma
cartilha, não foram educados nos mesmos colégios, nem militaram nas mesmas
organizações. Lula fazia parte do exército dos excluídos, menino pobre emigrou
para São Paulo, frequentou a escola primária até ao terceiro ano e depois foi
para a rua vender pirolitos, amendoim torrado e coisas semelhantes para ajudar
a pobre economia familiar sustentada pela sua mãe. Quando teve idade legal para
trabalhar, aos doze anos, entrou para o mundo do trabalho e foi daí que chegou
à Presidência da República. Chegou com as memórias do menino pobre que teve que
trabalhar para sobreviver, acrescentadas com a ideologia de um trabalhador e a
muita experiência das lutas sindicais. Por isso, ainda que muitas vezes tenham
tentado seduzi-lo com os encantos da burguesia ele teve o bom senso de resistir
a isso e manter-se fiel ao povo de que era originário. Nem tudo foi perfeito, é
verdade, mas no fundamental Lula manteve-se fiel à sua classe social. A Dilma,
pelo contrário, veio da Casa Grande, de família abastada aluna de colégios
particulares, só descobriu o outro lado do mundo a caminho da Universidade.
Depois veio a ditadura e a sua opção pela luta revolucionária. O que não pode
saber-se é até que ponto ela se despiu da sua ideologia para assimilar a
ideologia do povo trabalhador. Ela é pessoa de grandes qualidades, de grande
força de carácter, tem talvez uma visão mais ou menos correcta dos caminhos que
o Brasil deve trilhar, mas esqueceu-se que essa caminhada só se pode fazer com
o povo. Por isso, ela permitiu que os movimentos sociais fossem criminalizados,
ela não ouviu as vozes que vinham do Brasil profundo e deixou que camponeses e
líderes indígenas fossem assassinados, que as grandes empresas que constroem as
grandes obras do momento mantenham os seus trabalhadores em acampamentos que
parecem campos de concentração. Permitiu que a corrupção corroesse partes
significativas e demasiado importantes dos pilares da nação.
Assiste-se
actualmente no Brasil a uma onda avassaladora de igrejas evangélicas, todas
elas apostadas em conduzir o povo à salvação, mas que em
muitos casos, ou quase sempre, não passam de grandes grupos financeiros com
pouco evangelho, ou de pequenas igrejas que mais servem ao pastor que aos crentes. De qualquer modo é bem
possível, já que a igreja católica sempre se omitiu dessa tarefa, que as
igrejas evangélicas tenham levado os crentes a ler a Bíblia. Assim talvez
milhões de brasileiros tenham constatado no livro do Génesis que “ no princípio
era o caos” e que Deus criou o mundo a partir do nada. Por outro lado, seria
bom saber se todos os “istas” do Brasil estarão de acordo com MAO quando ele
afirma que “a sociedade nova só pode ser criada a partir do caos”. Se “istas” e
evangélicos estiverem de acordo pode até ser que se faça “luz”. Pessoalmente
prefiro as antiquíssimas lendas dos povos indígenas que se referem à criação de
um novo mundo a partir deste como a “Terra Sem Males”. Para isso não precisamos
de nenhum Deus, evitando-se assim um conflito entre os “istas” e os
evangélicos. A construção da “Terra Sem Males” será uma criação do Homem, de
todos os Homens, de todo o Povo.
Caro Alípio.
ResponderEliminarMuito pouco conhecedor da realidade Brasileira tenho procurado perceber o que se passa. A falta de tempo e o não ser capaz de tirar um curso à pressa para poder opinar,o teu post é esclarecedor. Desculpa mas vou surripiá-lo.
Excelente post. O discurso da Dilma pareceu-me uma mensagem de esperança no caminho certo. Veremos se enfrenta, pelo menos nalguma medida, os poderosíssimos interesses da "Casa Grande". Para a vencer necessitaria de vontade, clarividência mas também de uma organização à altura que não tem. É, em todo o caso, uma boa oportunidade para fortalecer a componente popular e radical do PT.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCom todo o respeito, não posso concordar com boa parte do que diz relativamente ao devir socio-político e socio-cultural do Brasil, sem deixar de referenciar a triangulação a que se refere, nem enquanto colónia, muito menos enquanto Império Independente, República-Estados Unidos do Brasil e República-República Federativa do Brasil!
ResponderEliminarNo final, o texto não deixa até de ser, se me permite, algo "sarcástico" para com a actual Presidente do Brasil, Sr.ª Dilma Rousseff, Excelência, o que me parece algo injusto, manifestamente!
Termino, dizendo que o "Movimento" em curso deve ser avaliado pela sua complexidade multidimensional e não reduzido a uma equação "binómica", se me permite, algo redutora e que não existe assim...!
O Brasil é independente vai para quase 200 anos e, para não ir mais atrás, desde aí, desde o "Grito do Epiranga", por Dom Pedro I, esse binómio deu já origem a muitos outros binómios...!
Ah, e não esquecer que, no período imediatamente anterior, o Brasil, e nomeadamente a Cidade do Rio de Janeiro, foi efectivamente a Capital do "Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves", o que, no conjunto, muito a beneficiou, à altura, e distinguiu o processo de emancipação do Brasil, de resto, do conjunto da evolução da restante América latina!
Gostei do texto, mas não posso concordar com os pressupostos de que parte..., é isso aí!