Carta Vária, porquê?



sexta-feira, 21 de junho de 2013

A praça é do povo

                                                 Praça Tiradentes(Ouro Preto)


Finalmente, e com grande surpresa minha, a imprensa portuguesa começou a preocupar-se com o Brasil por causa das manifestações que há uma semana vêm ocorrendo naquele país. Todos os dias chegam informações do correspondente da RTP no Brasil, cuja competência e conhecimento sobre o Brasil e América Latina não quero aqui discutir. Mas também os comentadores indígenas têm dado as suas opiniões sobre o que está a acontecer no país irmão no outro lado do atlântico. Agora já não são as novelas brasileiras, nem o futebol, nem a corrupção dos políticos, os pratos fortes dos seus comentários. Devo porém dizer que tanto os comentários do comentarista da RTP como os dos comentaristas indígenas revelam apenas, e tão-somente, um desconhecimento total da sociedade brasileira, do processo da sua formação e do seu começo. Talvez exigir esse conhecimento seja demasiado, mas para que os comentários tenham alguma credibilidade ele é absolutamente necessário. O Brasil-colónia criado em meados do séc. XVI foi construído em cima de um binómio que com algumas diferenças se mantém. É o binómio Casa grande - Senzala. A Casa Grande era o símbolo e também a forma de exercer o poder político, económico e cultural, em que se baseava a exploração colonial. A Senzala, por sua vez, era o local onde se concentrava a força de trabalho, primeiro a dos índios cativos, que por incrível que pareça eram os donos expropriados da terra e mais tarde os escravos negros arrancados a África. A comunicação entre a Casa Grande e a Senzala fazia-se sobretudo através da mestiçagem e mais tarde por meio de feitores brancos pobres emigrados ou desterrados par a colónia. Esta organização social, Casa Grande- Senzala, mantem-se com algumas diferenças até hoje. A Casa Grande continuou ocupada pelos descendentes dos primeiros colonos e também pelos novos tipos de colonização “banqueiros, traficantes de escravos, novos donatários, capitalistas de várias matizes, representantes do capitalismo inglês e depois norte-americano, grupos financeiros autóctones ligados a vários interesses estrangeiros …”. Na Senzala cabe todo o resto do Brasil, desde os operários fabris organizados ou avulsos aos camponeses com pouca terra ou sem terra, aos remanescentes das nações indígenas, todos os pretos e pobres do país, os desempregados, os sem trabalho, os sem qualificação profissional, a maior parte, a quase totalidade da “nova classe média” criada pela Bolsa Família e todos os sectores da classe média proletarizados. Temos assim, de um lado, os possuidores - aqueles que detêm a quase totalidade da riqueza produzida no Brasil que são um número reduzido e, do outro, a totalidade do povo brasileiro, daquele povo que hoje se manifesta nas ruas, não apenas por causa do aumento do preço dos transportes, mas sobretudo, porque não tem escola, não tem saúde, não tem trabalho, não tem transportes, mora mal, está ausente do que vulgarmente se considera cultura, nem se quer lhe resta o futebol, não só porque é caro mas também porque todos os seu ídolos foram traficados para os clubes europeus. Convém lembrar a todos aqueles que querem aventurar-se em comentários sobre a situação no Brasil que este país é aquele onde o fosso entre ricos e pobres é maior em qualquer lugar do mundo. Assim toda a riqueza se concentra na mão de uns poucos, todos eles ligados ao capital financeiro internacional ou interesses da mesma natureza e que são donos dos bancos, de toda a indústria, e de quase toda a terra disponível, que podem perpetuar sem nenhuma responsabilidade cívica ou jurídica a escravatura e condenar à fome a parte do povo que lhes aprouver. É bom lembrar que no Brasil a absoluta maioria da terra é destinada à criação de gado para exportação, de cana-de-açúcar para produzir combustíveis, de soja que os brasileiros não consomem e por isso tem outros destinos e finalidades, de fibras vegetais e de produtos de sobremesa como o chá, café e cacau. No Brasil um boi tem direito a dois hectares de terra mas há 30 milhões de famílias camponesas que não têm nem um pedaço onde possam cair mortas. Quando nós aqui não temos qualquer confiança nos políticos, pois a política partidária já caiu em descrédito, é preciso ir ao Brasil para saber o que isso significa verdadeiramente. No Brasil todos os partidos sem qualquer distinção não passam de valhacoutos onde se abrigam toda a espécie de bandidos, marginais, traficantes e exploradores do povo. Podem medir-se todos pelo mesmo raseiro, pois, desde o PT ao PSDB, passando por todos os outros todos, lêem pela mesma cartilha. Todas as tentativas de devolver o poder ao povo foram boicotadas para reforçar o sistema partidário vigente, que não passa de uma partidocracia. Quanto à Justiça, que devia ser um dos pilares da sociedade, ela está ao mesmo nível dos partidos. É evidente que entre as centenas de juízes que existem no Brasil há alguns que pautam as suas decisões de acordo com a ética e a verdade mas, a maioria, tem um preço. É ilusório achar que o Brasil piorou só porque houve uma mudança de inquilino no palácio do Planalto. É evidente que Lula e Dilma não têm a mesma origem social, não leram pela mesma cartilha, não foram educados nos mesmos colégios, nem militaram nas mesmas organizações. Lula fazia parte do exército dos excluídos, menino pobre emigrou para São Paulo, frequentou a escola primária até ao terceiro ano e depois foi para a rua vender pirolitos, amendoim torrado e coisas semelhantes para ajudar a pobre economia familiar sustentada pela sua mãe. Quando teve idade legal para trabalhar, aos doze anos, entrou para o mundo do trabalho e foi daí que chegou à Presidência da República. Chegou com as memórias do menino pobre que teve que trabalhar para sobreviver, acrescentadas com a ideologia de um trabalhador e a muita experiência das lutas sindicais. Por isso, ainda que muitas vezes tenham tentado seduzi-lo com os encantos da burguesia ele teve o bom senso de resistir a isso e manter-se fiel ao povo de que era originário. Nem tudo foi perfeito, é verdade, mas no fundamental Lula manteve-se fiel à sua classe social. A Dilma, pelo contrário, veio da Casa Grande, de família abastada aluna de colégios particulares, só descobriu o outro lado do mundo a caminho da Universidade. Depois veio a ditadura e a sua opção pela luta revolucionária. O que não pode saber-se é até que ponto ela se despiu da sua ideologia para assimilar a ideologia do povo trabalhador. Ela é pessoa de grandes qualidades, de grande força de carácter, tem talvez uma visão mais ou menos correcta dos caminhos que o Brasil deve trilhar, mas esqueceu-se que essa caminhada só se pode fazer com o povo. Por isso, ela permitiu que os movimentos sociais fossem criminalizados, ela não ouviu as vozes que vinham do Brasil profundo e deixou que camponeses e líderes indígenas fossem assassinados, que as grandes empresas que constroem as grandes obras do momento mantenham os seus trabalhadores em acampamentos que parecem campos de concentração. Permitiu que a corrupção corroesse partes significativas e demasiado importantes dos pilares da nação.
Assiste-se actualmente no Brasil a uma onda avassaladora de igrejas evangélicas, todas elas   apostadas  em conduzir o povo à salvação, mas que em muitos casos, ou quase sempre, não passam de grandes grupos financeiros com pouco evangelho, ou de pequenas igrejas que mais servem ao pastor  que aos crentes. De qualquer modo é bem possível, já que a igreja católica sempre se omitiu dessa tarefa, que as igrejas evangélicas tenham levado os crentes a ler a Bíblia. Assim talvez milhões de brasileiros tenham constatado no livro do Génesis que “ no princípio era o caos” e que Deus criou o mundo a partir do nada. Por outro lado, seria bom saber se todos os “istas” do Brasil estarão de acordo com MAO quando ele afirma que “a sociedade nova só pode ser criada a partir do caos”. Se “istas” e evangélicos estiverem de acordo pode até ser que se faça “luz”. Pessoalmente prefiro as antiquíssimas lendas dos povos indígenas que se referem à criação de um novo mundo a partir deste como a “Terra Sem Males”. Para isso não precisamos de nenhum Deus, evitando-se assim um conflito entre os “istas” e os evangélicos. A construção da “Terra Sem Males” será uma criação do Homem, de todos os Homens, de todo o Povo.

4 comentários:

  1. Caro Alípio.
    Muito pouco conhecedor da realidade Brasileira tenho procurado perceber o que se passa. A falta de tempo e o não ser capaz de tirar um curso à pressa para poder opinar,o teu post é esclarecedor. Desculpa mas vou surripiá-lo.

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  2. Excelente post. O discurso da Dilma pareceu-me uma mensagem de esperança no caminho certo. Veremos se enfrenta, pelo menos nalguma medida, os poderosíssimos interesses da "Casa Grande". Para a vencer necessitaria de vontade, clarividência mas também de uma organização à altura que não tem. É, em todo o caso, uma boa oportunidade para fortalecer a componente popular e radical do PT.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Com todo o respeito, não posso concordar com boa parte do que diz relativamente ao devir socio-político e socio-cultural do Brasil, sem deixar de referenciar a triangulação a que se refere, nem enquanto colónia, muito menos enquanto Império Independente, República-Estados Unidos do Brasil e República-República Federativa do Brasil!

    No final, o texto não deixa até de ser, se me permite, algo "sarcástico" para com a actual Presidente do Brasil, Sr.ª Dilma Rousseff, Excelência, o que me parece algo injusto, manifestamente!

    Termino, dizendo que o "Movimento" em curso deve ser avaliado pela sua complexidade multidimensional e não reduzido a uma equação "binómica", se me permite, algo redutora e que não existe assim...!

    O Brasil é independente vai para quase 200 anos e, para não ir mais atrás, desde aí, desde o "Grito do Epiranga", por Dom Pedro I, esse binómio deu já origem a muitos outros binómios...!

    Ah, e não esquecer que, no período imediatamente anterior, o Brasil, e nomeadamente a Cidade do Rio de Janeiro, foi efectivamente a Capital do "Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves", o que, no conjunto, muito a beneficiou, à altura, e distinguiu o processo de emancipação do Brasil, de resto, do conjunto da evolução da restante América latina!

    Gostei do texto, mas não posso concordar com os pressupostos de que parte..., é isso aí!

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