Te cuida Miró! Os quarenta ladrões estão à
solta!
Conheci o Miró na prisão…
Depois
de uma greve de fome de trinta dias, na penitenciária do Estado de S. Paulo,
para onde cerca de trinta presos políticos foram transferidos por ordem do auditor
militar, um tal Dr.Nelson, fomos depois enviados para o presidio do Carandiru. Nessa
greve, foi importante a acção, entre outras pessoas, do Núncio Apostólico e do
Cardeal Arms, Arcebispo de S.Paulo, e sobretudo, a decisão da ditadura,
transformada em ordem para os médicos, de que nenhum de nós poderia morrer. Devo
acrescentar ainda que a penitenciária de S. Paulo era um lugar destinado não apenas
a guardar os presos até que eles cumprissem a sua pena, mas sim a destrui-los
psicológica e moralmente. Ao entrar lá, perdia-se imediatamente a identidade e
os presos passavam a ser conhecidos apenas por um nº que os acompanharia
enquanto lá estivessem. A reclusão era total, quebrada apenas por uma hora de “banho
de sol”, se essa fosse a vontade do Diretor. A mesma arbitrariedade em relação
às visitas, obrigatórias por lei, mas que a vontade do diretor podia cancelar a
seu belo prazer.
Chegados
ao presidio do Carandiriu, o coronel da PM Fernão Guedes, seu diretor,
reuniu-nos e disse-nos o seguinte:
-“Agora
tratem de se recuperar. Os médicos do presidio estão a par da vossa situação. A
minha função aqui, como Diretor, é apenas a de manter-vos presos,
proporcionando-vos as condições necessárias para que a vossa vida corra
normalmente, pois não é meu direito agravar as vossas penas, tornando-as mais
difíceis ainda de cumprir. Esta norma serve para mim, para todos os
responsáveis de pavilhão e para vós mesmos. Agora distribuam-se pelas celas como
quiserem e organizem-se neste espaço. As vossas visitas e banhos de sol serão
regidos pelas mesmas normas de todos os presos.”
Era
a primeira vez, em todas as prisões por onde tinha passado, onde um Diretor afirmava
tais coisas. Afirmou e sempre cumpriu. Quando ficámos sós, sentámo-nos numa
sala grande, olhámos uns para os outros. Custava-nos a acreditar no que ouvíramos,
mas diante da realidade, começámos a definir o que seria a nossa vida ali
naquele presidio. Fizemos então uma lista de pedidos a encaminhar à Administração:
receber livros, jornais e música; celas abertas durante todo o dia;
possibilidade para praticar desporto e ainda de fazer artesanato-atividade
importante para nós - não só porque nos mantinha ativos, mas também porque ajudava
as famílias de alguns companheiros em dificuldade. Todas as exigências foram
atendidas sem reservas.
Foi
nessas circunstâncias que um dia chegaram ao presidio, durante uma visita, umas
coleções de reproduções de pintores célebres, entre os quais Juan Miró, que
quase ninguém conhecia, mas que agradou a todos pela possibilidade de ser reproduzido em
couro, pelo sistema BATIK.
Comigo,
foi amor à primeira vista, sempre que podia, levava o livro, onde estavam as
reproduções das suas pinturas, para a cela e ficava a examiná-las horas
seguidas, tentando encontrar nelas algum sentido. Depois via-me de olhos
fechados a examiná-los e, aí, tudo se animava por detrás da minha retina.
Comecei até a pensar que Miró, antes de
pintar os seus quadros, ficaria de olhos fechados a olhar para o nada, esperando que alguma
coisa acontecesse e então aconteciam aquelas pinturas. Mais tarde, li que Miró
pintava as imagens que se iam construindo na sua cabeça quando estava de olhos
fechados. É por isso que Miró foi meu companheiro de prisão e continuou a acompanhar-me pelos muitos lugares
por onde andei depois.
Vem
isto tudo a respeito da polémica absurda que agora se levanta em torno das 85
pinturas de Miró, propriedade do estado português, melhor dizendo, de todos os
portugueses, que o 1º Ministro e a horda de traficantes que fazem parte do seu Governo,
querem vender para saldar parte de uma dívida insolúvel que eles mesmos
fizeram.
Nem
me admira muito que esta horda esteja tão determinada a vender aquilo que não é
seu, uma vez que eles são capazes de vender a própria mãe e entrega-la ao
comprador.
Muitas
vezes fala-se com horror da Inquisição que queimava pessoas vivas, desenterrava
cadáveres para os julgar e queimar na fogueira, queimava livros, desterrava
pessoas, destruía obras de arte, era inimiga jurada da ciência, e durante mais
de 300 anos reduziu este país à maior indigência intelectual e política de que
se tem memória na História. Fala-se também com horror, das perseguições
nazistas aos intelectuais, aos homens de cultura, aos artistas de todas as
artes e também da queima pública de livros. Para um nazi bastava apenas um
livro: Mein Kampf. Foi esse o mesmo argumento que levou o comandante muçulmano que
conquistou Alexandria a mandar queimar a biblioteca de Alexandria, a maior, a mais
rica e a mais famosa do mundo. Segundo ele, o mundo precisava apenas de um
livro: O Corão.
Mas
não precisamos de ir procurar argumentos a outros lugares. O que fizeram em
Portugal as Mesas Censórias? Que comportamento teve em relação à cultura e à inteligência,
o fascismo? E já depois do 25 de Abril, não houve aqui um Secretário de Estado da
Cultura e um Primeiro Ministro que anatematizaram a obra do único prémio Nobel de Literatura que
Portugal Já teve, José saramago?
O
que me preocupa, no caso da tentativa de venda fraudulenta das obras de Miró, é
que se transforme apenas numa tempestade num copo de água com debates acessos no
princípio, mornos, a seguir, e depois esfrie, animando a quadrilha do governo a
uma nova tentativa, melhor preparada, e com sucesso quase garantido. No momento,
a discussão está na rua mas ainda não chegou ao povo que, pressionado pelos
muitos problemas que o afligem, não tem tempo nem cabeça para se preocupar com
atentados culturais. É necessário que a indignação chegue às ruas e que as pessoas comuns entendam que um povo sem
cultura, não é um povo, é, no máximo, um rebanho de carneiros castrados que querem apenas comer.
E é na transformação deste povo português que já deu provas em muitas ocasiões
de ser capaz de tomar grandes atitudes, atitudes até extremas, de ocupar o seu
lugar na História, que essa quadrilha do Governo e seus apoiantes, dentro e
fora da Assembleia da República, quer transformar em rebanho castrado. Hoje
vendem o Miró, amanhã o acervo do Museu de Arte Antiga, depois o Museu de Arte
Moderna, logo a seguir o Jerónimos e Alcobaça a uma empresa hoteleira e não pararão
até que nos transformem a todos em trabalhadores temporários com deveres e sem
direitos. Sei do que estou a falar porque levo mais de 50 anos a lutar contra
essas quadrilhas e a tentar contribuir para a construção de um mundo solidário,
fraterno e humano, onde a cultura seja um bem primordial.
Alípio
de Freitas
P.S.
Sabe-se que o BPN teria no seu acervo não apenas 85 quadros do Miró mas sim 200
peças. O que é feito das 115 que faltam? Talvez a quadrilha que geriu o BPN a
seu favor e faz de conta que nada disto é com ela saiba alguma coisa sobre o
assunto…!
Se
eu tivesse os 35 milhões de euros, eu mesmo comprava os 85 quadros de Miró e
haveria de construir um Museu onde seria proibida a entrada a todos os membros
da quadrilha do Governo e ainda a de todos aqueles que a apoiam dentro e fora
do Parlamento…