O estado da Nação
No dia em que na Assembleia da República se discutiu o estado
da Nação, estive especialmente atento à televisão. Sentei-me do ecrã e,
pacientemente, assisti a um filme a que já antes tinha assistido nem sei
quantas vezes. Nesta e noutras legislaturas. O mesmo cenário, quase todos os
mesmos atores , o mesmo estilo de dissuasão, os mesmos problemas, o mesmo vazio
de soluções. E nesta, como noutras vezes, a minha imaginação arrancou-me
daquele cenário e conduziu-me a um outro, bem distante no tempo, mas, simbolicamente
idêntico.
Em tempos, existia na televisão brasileira, um programa de
humor pensado, escrito e interpretado por Xico Anísio e outros atores, que
entre outros quadros, apresentavam um que se passava no café de uma
cidadezinha, no interior do Nordeste. Ali, naquele único café da cidade, se
juntavam, semanalmente, para discutir e avaliar os problemas da cidade, do
Brasil e do mundo, as pessoas mais gradas e entendidas do lugar: o Juiz de
Direito, o Delegado de Polícia, o Coletor de Impostos, o Diretor do Jornal
local e também um sujeito, que não sendo ele mesmo importante, sempre acompanhava
aqueles que pareciam sê-lo. A sua função
era fechar a discussão, mesmo sem nunca ter entrado nela. E enquanto durou o
programa, anos e anos, ele o encerrou do mesmo modo: "pois é, meus amigos, a ignorança é que astravanca o
progressio".Ora aí está uma boa forma de a senhora presidente da Assembleia
da República, que é mesmo licenciada em Direito, já foi juíz do TC e deputada,
em não sei em quantas legislaturas, uma boa forma, repito, de encerrar as
sessões na Assembleia da República. Se não é a "ignorança que estravanca o
progressio", o que é então?
A corrupção político-ideológica dos partidos políticos,
especialmente os do "arco do poder"? A submissão canina, abjeta ou
interessada da política e dos políticos a interesses contraditórios com os do
povo? O poder e a ganância desenfreada e criminosa dos bancos e banqueiros? A
TROIKA? O capital financeiro? Os traficantes de influências, de droga, de armas
e de novas escravaturas? Os interesses inconfessáveis das parcerias público-privadas?
A inoperância da justiça que é madrasta para os pobres, mãe protetora dos ricos?
A comunicação social, pública e privada, onde proliferam os "lulus" e
os "papagaios de pirata"? O sistema político representativo,
capitalista e burguês que se representa si mesmo? O povo rebanho que apesar do
seu mau viver, está sempre à espera de novos enganos, novas promessas, novos
messias?
Poderia continuar indefinidamente a fazer perguntas. Nenhuma
seria respondida. E se o fosse, a resposta teria tantas condicionantes que a tornariam
inviável. Apesar disso, todas as perguntas que acima se fizeram devem ser
respondidas com verdade e sem subterfúgios, sem desculpas esfarrapadas.
Necessário ainda e antes de tudo mais, é dar um basta
definitivo à imoralidade e ao mar de lama em que o país submergiu.
O povo português, e digo povo em sentido marxista, aquelas
classes ou sectores de classe que têm um projeto de construção de um país, um
novo país, no espaço físico e geopolítico e cultural que é o nosso, sem dependências
nem dominações, livremente, que o comecem a fazer já hoje, sem medo, recusando
toda a opressão que de forma perversa e insidiosa sobre nós se abateu. Um país
democrático, participativo, solidário onde se cumpra a canção da Utopia do
Zeca, onde, "a folha da palma afaga a cantaria".