Memória de um 1º de maio tropical
Em 1945, o Brasil vivia os últimos dias do Estado Novo,
imposto por Getúlio Vargas, após o golpe de 1937.Animados, porém, com a já
certa vitória dos Aliados sobre a Alemanha nazi e as demais forças que a
apoiavam, os políticos brasileiros, exilados, clandestinos, presos ou em
liberdade vigiada, começaram a organizar-se, a dar corpo a novos partidos,
difundido novas propostas políticas e novas ideologias. Cada qual escolheria o
seu campo de ação, a terra da sua sementeira e posterior colheita.
O partido Comunista, então do Brasil, não foi excepção. Ele
que fora quase riscado do mapa político-social após a intentona de 1935, lá foi
ressurgindo das próprias cinzas e em 1945 era uma força ponderável na
clandestinidade, com bases seguras e alargadas entre a classe operária, o
campesinato e a classe média mais esclarecida. Baurú, uma cidade do centro do
Estado de S. Paulo, não era, pois uma exceção. Centro ferroviário da maior importância,
além de centralizar quase todo o tráfego do Estada, sediava ainda as oficinas
gerais .Além disso, era um centro têxtil, comercial e agrícola em grande expansão.
Não é de estranhar , portanto, que os comunistas se tivessem a lançado à sua
conquista para construir aí uma das sua mais poderosas bases em todo o Estado.
Agora começa a nossa história. Pareceu bem ao Comité Regional
do Partido Comunista em Baurú, que, lá
mesmo, apesar da vigência ainda do Estado Novo e da dura clandestinidade
oficial, pareceu bem que em Baurú, baluarte comunista do centro do estado de S.
Paulo, se comemorasse o 1º de maio, antecipando a comemoração da vitória na
guerra que estava por um fio. Além disso, a presença da URSS, presença e acção, contribuíra
decisivamente para a derrota do nazi-fascismo.
Era bem verdade que o estado novo era um estado fascista, mas também não era menos verdade que os
"pracinhas" (força expedicionária brasileira) estavam a lutar ombro a
ombro com os Aliados na Itália. Vistos, revistos e analisados todos os prós e
contras da decisão, avançou-se decididamente para a comemoração pública,
ostensiva e até desafiadora do 1º de maio. O ano de 1937 já ia longe e os
tempos que agora se anunciavam eram francamente favoráveis à democracia.
A decisão foi comunicada a todas as bases do partido, que,
decidiu transformar aquele 1º de maio de 1945 num ato de liberdade assumido e
não outorgado. Tudo, mas tudo, desde um simples cartaz, às palavras de ordem, às
faixas, ao itinerário, ao lugar de cada um no desfile naquela marcha, tudo foi discutido
ao pormenor. Aquele 1.º de maio em Baurú teria de ficar na história do
movimento revolucionário brasileiro como um marco indelével.
Tudo rodava sobre carris, quando, alguns dias antes do 1.º de
maio, um dirigente do C.R. sugeriu aos seus camaradas de Direcção que, achava
ele, se deveria consultar o camarada Lenine sobre o assunto. A proposta pode
parecer estranha vinda de um camarada dirigente marxista, como é de norma, ateu
ou pelo menos agnóstico materialista histórico
e dialéctico, adepto só da ciência.
Não se esqueça , no entanto, que, no Brasil, os pecados
originais são dois e não um. O de Adão e Eva , que já nos faz nascer pecadores,
e o do Sincretismo que pode fazer com
que na mesma pessoa convivam em harmonia, um materialista e um macumbeiro, um
católico e um frequentador de terreiro, um evangélico e um cultuador de orixás,
um padre católico e um irmão maçom, uma Mãe de Santo e uma filha de Maria ou
até tudo isto junto...
Pelo sim pelo não, os demais membros do Comité Regional lá se
reuniram numa sala onde, como únicos móveis , havia uma mesa redonda de pé de
galo e tantas cadeiras quantas os presumíveis participantes na sessão.
Cumpridos os rituais e depois que a mesa de pé de galo deixou
de pular e o silêncio novamente se fez, um dos camaradas presentes, com voz de ventríloquo,
em português do Brasil, com forte sotaque estrangeiro, transmitiu a ordem do
camarada Lenine para que a manifestação se realizasse. Lenine estava de acordo:
haveria 1º de maio em Baurú.
A polícia de Baurú, que não recebia ordens de Lenine mas sim
do Governador de S. Paulo estava perfeitamente
informada de tudo o que se preparava.
Quando os manifestantes saíram para a
rua e se começou a organizar o grande desfile, a polícia não foi de modas.
Entrou para quebrar e caiu sobre os
manifestantes sem dó nem piedade, batendo, prendendo, atropelando. Aliás a
polícia de S. Paulo é portadora de uma tradição de violência que não tem
paralelo sequer no Brasil. As organizações de Direitos Humanos atribuíram-lhe no
ano passado cerca de 3.000 assassinatos
- tudo para manter a lei e a ordem .
Desse longínquo 1º de maio de 1945 em Baurú, Estado de S. Paulo,
certamente só restam algumas memórias com estas, que recebi de um participante ativo
desse acontecimento, o meu amigo , antigo camarada, Delamar Machado, ao tempo
membro dirigente do Partido Comunista. Já
se tinham passado mais de quarenta anos sobre este acontecimento e Delamar Machado
ainda estava zangado com Lenine e assim morreu.
Para ele, "Lenine era um sujeitinho liberal". Virara estalinista."Estaline
poderia ter cometido alguns erros. Mas quem os não cometeria diante das
dificuldades que teve de superar? Poderia ter cometido erros sim, mas de
liberalismo, jamais alguém o poderá
acusar".
P.S. Machado, estou com saudades das nossas "brigas
" político-ideológicas.
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