Carta Vária, porquê?



terça-feira, 6 de março de 2012

Esta estória que vos conto: Santa Cruz, na Fortaleza

Meados de 1977.Talvez Maio, Junho ou Setembro. Não me recordo. "Seu" Zezinho, o chefe da carceragem, pediu-me para passar lá, pois tinha uma encomenda para me entregar. Fora, disse-me ele, um Senhor da Embaixada de Portugal (Jacinto Rego de Almeida) que ma deixara.
Voltei para a minha cela e lá abri o pacote. Continha jornais portugueses, entre eles o Expresso e uma cassete com músicas de um cantor, que eu desconhecia, chamado José Afonso. Coloquei a cassete num gravador e fui ouvindo, não sem estranhar os temas e, sobretudo o seu engajamento político. Aquilo era diferente de tudo o que até então tinha ouvido. Só encontrava paralelo na música latino-americana de intervenção.
Quando o gravador começou a debitar a última música, achei que não estava a ouvir bem. Rebobinei a fita , acomodei-me na cadeira onde estava sentado, carreguei no botão e comecei a ouvir de novo:
"Baía de Guanabara
Santa Cruz na Fortaleza
Está preso Alípio de Freitas..."
Com o coração apertado, a emoção a subir-me pela garganta, as lágrimas a quererem saltar-me  dos olhos, cobri o rosto com as mãos e quando o gravador se calou, encostei a cabeça na mesa de cimento à minha frente e chorei, chorei, até as lágrimas secarem. Afinal nunca estivéramos sós na dura e aparentemente interminável guerra que travávamos contra a ditadura militar. Muitos, muitos e em muitos lugares do mundo estavam a lutar connosco.
À noite, depois de jantar, na sala de convívio, todos os que ali, na Frei Caneca(Rio de Janeiro), estávamos presos, escutámos o Zeca. Quando, porém, a "minha cantiga"começou, todos os que estivemos na "batalha" da Fortaleza de Santa Cruz, fomos possuídos pela inabalável certeza de que foi ali que a ditadura militar começou a ser derrotada.
O Zeca foi a Voz que denunciou a opressão e o arauto que anunciou ao mundo o triunfo de uma liberdade até então oprimida.
Quando em Fevereiro de 1979 saí da prisão, depois de 10 anos de uma  luta sem tréguas contra um sem número de sentenças iníquas e depois que todos os presos políticos foram libertados( muito a custo, diga-se), vim a Portugal para observar o que por cá se passava e, sobretudo, conhecer o Zeca. Encontrámo-nos no pavilhão Carlos Lopes, onde se realizaria um concerto de apoio às lutas revolucionárias da América Latina. A impressão que eu tive então, foi a de que o Zeca e eu sempre estivéramos juntos, que nos conhecíamos desde sempre e que , a partir daquele dia, não haveria mais ausências. E foi isso mesmo que aconteceu.  Regressei ainda ao Brasil, voltámos a estar juntos em Moçambique e depois de novo em Portugal. Nunca mais , até hoje, nos perdemos um do outro. Quantas estórias nós contámos, quantos propósitos formulámos juntos, sobre quantas coisas em que tínhamos dúvidas nos interrogámos.
Quando resolveu partir , o Zeca fê-lo como um rei. Passeou-se pelo meio do seu povo, que o chorou, que o aplaudiu e o cantou. Alguns, poucos, pensaram que não mais voltaria, mas o povo que o amava bem sabia que isso não aconteceria porque algum dia seria necessário "sair para rua gritar", porque os vampiros "bebem o vinho novo e dançam no pinhal do rei", querendo "comer tudo"e também porque os "meninos nazis" que se tinham fingido de mortos, logo que o tempo lhes fosse favorável reivindicariam os seus direitos de filhos da puta.
P.S.À atenção de todos os "cipaios" de todas as TROIKAS:"fascistas da mesma igualha/ao tempo Carlos Lacerda/sabei que o povo não falha/seja aqui ou noutra terra."Foi também o Zeca quem cantou um dia "o povo é quem mais ordena".Estas palavras tiveram eco e transformaram-se em Revolução.





5 comentários:

  1. Caro Alípio
    O meu monitor teima em estar embaciado. Já te tinha deixado uma "nota" no FB. Mas agora com este teu post fiquei extremamente emocionado, não só pela pequena parte da tua história que modestamente contas, como pela forma como conheceste a canção que o Zeca te dedicou.
    Sabes? sou duma terra onde os presos políticos foram muitos. O meu próprio Avô esteve preso 14 anos. Tarrafal, Angra do Heroísmo, Caxias, Peniche de todos estes sítios conheci gente e estórias de quem por lá passou e o que lá sofreu. Alguns não voltaram para contar.
    Renovo o meu abraço solidário.
    Rodrigo

    ResponderEliminar
  2. Continua por favor ALÍPIO a inundar-nos com o rio da TUA SOLIDARIEDADE, não te tiraram a VONTADE que VEM DE DENTRO de continuar a LUTAR sem NUNCA TRAIR OS TEUS, que eu leio "forçados desvalidos", para que a IGUALDADE seja possível..... Podes não o dizer aqui mas digo eu, cá vai.

    O ALÍPIO DE FREITAS considera que esta canção do ZECA ( que está no Albúm AS MINHAS TAMANQUINHAS ), tendo embora o nome dele é DEDICADA aos os PRESOS POLITICOS de todo o MUNDO...

    Conhecendo alguma da sua HISTÓRIA DE VIDA, isso ao princípio não me entrou lá muito bem, já muito antes quando ouvia a canção só pensava mesmo no ALÍPIO e na sua GRANDEZA de alma. HOJE RECONHEÇO que sim, É ISSO MESMO, reconheço-o não pela SIMPLICIDADE nem pela MODÉSTIA do ALÍPIO mas porque tanto a ELE como ao ZECA os considero REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS, mas há mais, ao falar e cantar numa REFERÊNCIA de luta, que estava preso e tantas greve de fome fez, como tantos outros que se foram antes do tempo, deu o ZECA ás palavras e música uma simbologia falando nele, que efectivamente se transpõe para todos os outros.
    Note-se qua quando comheci o ALIPIO já há muito conhecia a canção, mas agora conheço um livro dele editado no Brasil - RESISTIR É PRECISO - tremendo e não aconselhavel a pessoas sensíveis,,,,, é desta forma que há GENTE que por mais que queiram alguns NUNCA MORRERÁ.

    ABRAÇO E UM BEIJO - MANO VELHO

    ResponderEliminar
  3. Alípio,
    Cheguei aqui por indicação do Rodrigo e fico agradecida a ele pela indicação.
    Tua história é linda, fiquei emocionada! Sou brasileira e conheço as histórias terríveis da ditadura.
    Gosto e fico.
    Um grande bj

    ResponderEliminar
  4. Era aluna de Históra de José afonso quando o expulsaram da docência. E essa canção sobre a sua luta e dos seus companheiros conheço-a desde que saiu.

    Partilhei no facebook

    Desejo-lhe um bom final de semana

    ResponderEliminar
  5. São histórias de vidas e perseverança. Meu avô também chegou aqui anos atrás fugindo dessas coisas.
    Beijos

    ResponderEliminar