Paulo Wright-Amigo maior que o
pensamento
Pediram-me amigos e antigos companheiros de Santa Catarina um
depoimento sobre Paulo Wright. Sobre ele e sobre os acontecimentos que levaram
à sua morte às mãos da ditadura militar brasileira.
Conheci o Paulo em 1963, no
escritório central da Frente de Mobilização Popular. Era ele então deputado
estadual na Assembleia Legislativa de Santa Catarina e protagonizava, em termos
políticos, os propósitos da Frente de Mobilização no tocante às Reformas de Base.
Foi-me apresentado pelo Paulo Shilling, secretário executivo da Frete de
Mobilização Popular que me sugeriu acompanhasse o Paulo a S. Catarina para aí,
com ele e com outras lideranças políticas e sociais, dinamizar as atividades da Frente.
Assim, percorri uma boa parte do
Estado de S. Catarina participando de debates e comícios. Voltaria lá no começo
de 1964 (fevereiro-março) para dar continuidade a esse trabalho e ajudar o Paulo
a aprofundar o que ele mesmo vinha desenvolvendo havia anos. Regressei ao Rio
de Janeiro depois do comício do presidente João Goulart, na Central do Brasil,
pois a minha presença era requisitada com urgência. Foi durante essas visitas a
Santa Catarina que comecei a construir com Paulo Wright uma amizade que dura
até hoje.
Depois do Golpe Militar de 1964
encontrámo-nos no México onde repartimos amizades e experiências. Finalmente
encontrámo-nos em Cuba que era o
objetivo fundamental da nossa saída do Brasil para o exilio. Terminada a missão
que nos levara a Cuba, regressámos juntos
à América Latina, via Chile onde nos separámos, regressando ele ao Brasil e viajando eu para
a Argentina. Reencontrámo-nos em S. Paulo vários meses depois. Aí, por ele,
soube de tudo o que acontecera na Ação Popular depois do regresso de Aldo
Arantes e Betinho. Percebi imediatamente que a nova direção regressada do
Uruguai, ainda que tivesse feito aprovar o documento -base que falava
extensamente da luta armada, não só não tinha qualquer intenção de organizá-la,
como se opunha a quaisquer contactos com as novas Organizações revolucionárias
que estavam surgindo e que também se propunham fazê-lo. Mas a prova real disso
mesmo tive-a quando depois de um longo e penoso trabalho, realizado por mim e
pelo Mariano (Loyola), para encontrar um lugar para um campo de treinamento, me
foi dito que não era essa a intenção da Organização e que se insistíssemos
nesse caminho, o melhor mesmo era abandoná-la. Falei com o Paulo sobre isso,
uma vez que ele era no organigrama da AP o responsável pela organização da luta
armada. A única reação que dele obtive foi a de um grande desalento e deceção. Devo
esclarecer, porém, que o Paulo sempre defendeu que quem deveria ocupar-se dos
assuntos refentes à luta armada era eu, uma vez que já tinha experiências nesse campo. Fomo-nos
encontrando, vez por outra, aqui e ali, sem nos perguntarmos muito sobre aquilo
que cada um estava a fazer. Algum tempo depois deixei S. Paulo definitivamente
e embrenhei-me por todos os lugares do Brasil onde houvera movimento camponês
organizado e sabia que havia companheiros que esperavam apenas uma palavra de ordem.
Tudo isso porém, à revelia da Direção da Ação Popular que permanecia em S.
Paulo, esperando sentada que a ditadura caísse. Foi nesse tempo que na última
reunião em que participei me foi endereçado o convite para viajar para a China,
convite que eu recusei pois não tinha outra
finalidade mais do que afastar-me do Brasil. Com o Paulo fui sempre
mantendo contactos mais servindo estes
para aprofundar a nossa amizade pessoal do que para discutir questões
político-ideológicas. Ele estava profundamente magoado com tudo o que ia
acontecendo à sua volta, e eu não queria, de modo algum, piorar a situação com
que ele se debatia. A certa altura, tive a impressão, repito, a impressão, de
que o único apoio e amizade que ele tinha dentro da organização era eu, tal era
o desânimo que se lhe podia ler na alma.
Não faltou quem estranhasse,
dentro e fora da Ação Popular, que eu não tivesse participado da reunião que
levou ao seu "racha" e que desembocou na AP-ML liderada por Jair
Ferreira de Sá e no Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT),
liderado pelo denominado "grupo do Rolando"(Vinicius Caldeira Brandt).
A minha ausência justifiquei-a a mim mesmo por três ordens de razões: a
primeira porque a reunião era tão somente um ajuste de contas entre o grupo do
Jair (os militantes que tinha estado na China durante a Revolução Cultural) e
os antigos dirigentes da Ação Popular que, vindos do Uruguai, usurparam o poder
depondo a Direção então existente no Brasil; a segunda, era que nessa reunião
participavam o Paulo Wright e o José Novais (líder camponês do nordeste), que
eu sabia ficariam com a AP-ML, mas de quem me era absolutamente penoso separar, tal era a nossa amizade e identidade ideológica; a terceira razão era
o facto de a AP-ML tal como a antiga AP
ser incapaz de compreender a necessidade e urgência de fazer confluir a
esquerda revolucionária num único projeto que fosse credível e eficaz.
O José Novais encontrei-o casualmente
já depois da Amnistia no aeroporto de S. Paulo, sendo ele então militante e
dirigente do Partido dos Trabalhadores. O nosso abraço sem palavras e só com
lágrimas ressarciu-nos do tempo perdido. Do Paulo fui sabendo notícias, cada
vez mais esparsas, até à da sua prisão e desaparecimento. A ele chorei-o
sozinho.
Muitas vezes quis acreditar que
no final dos tempos justiça se faria a
todos aqueles que amaram os seus irmãos a ponto de darem por eles as suas
vidas. Mas esse é um privilégio dos crentes. Eu prefiro ficar-me com uma história que um dia, sendo eu ainda
menino, me ensinou um velho lutador das causas do povo. Para lá do imaginário
das pessoas e para lá de tudo o que as crenças ensinam, existe uma constelação,
que os astrónomos não conhecem nem identificam - a constelação da Utopia - onde
todos aqueles que lutam toda a sua vida por um mundo só de irmãos se transformam
em estrelas quando partem da terra , cumprida a sua missão. É para lá que eu
olho, seja qual for o tempo, sempre que quero recordar o Paulo Wright, o José
Novais, o Mariano, o Raimundinho, o Augusto do Nascimento, o João Pedro Teixeira, o Marighella, o
Lamarca, o Frei Tito, o Câmara Ferreira, o José Porfírio, o Epaminondas, o
Massena e os mil e mil outros que lutaram todos os dias e cujas vidas foram
ceifadas pelo capitalismo, pelo latifúndio, por ditaduras cruéis. Neste momento
em que a cegueira física me jogou num labirinto do qual sozinho jamais saberia
sair e em que algumas vezes, mesmo com a meta à vista, a vontade de existir é
quase insuportável, é deles, de todos eles e muito especialmente do Paulo que
me socorro para continuar. Obrigado, Paulo.
É importante que se recorde aqui
que a opção do Paulo Wright pela Revolução
não só foi uma opção de alto risco como lhe custou inúmeros sacrifícios e
incompreensões. Mas essa escolha começara a delinear-se já antes de 1964 quando
quase solitariamente, como deputado estadual, começou a interessar-se pelas
organizações sindicais de trabalhadores e pescadores, transformando a sua opção
evangélica numa força combativa permanentemente ao serviço dos pobres e dos
trabalhadores. Depois de 64 não teve dúvidas e dividiu com a sua família a quem
não deu a assistência que gostaria de ter dado, os custos de uma
clandestinidade difícil. Como militante revolucionário nunca discutiu cargos na
hierarquia das organizações a que pertenceu, mas sempre esteve disponível para
o cumprimento de todas as tarefas de que o incumbiram. Viveu pobremente, às
vezes em quase situação de miséria como alguns amigos comuns me reportaram. Foi
expulso da sua Igreja como se de um herege se tratasse e só bem tardiamente essa mesma Igreja o
readmitiu atribuindo-lhe o lugar que era seu por direito. Também a Assembleia
Legislativa do seu Estado a quem ele prestigiou com a sua luta, o expulsou. Tardou
a reconhecer-lhe os seu méritos de cidadão, cidadão empenhado e lutador das
verdadeiras causas do povo. Vale, porém, que do coração e da memória dos seus familiares, amigos e companheiros ele
nunca esteve ausente.
José Afonso foi o maior cantautor
revolucionário de sempre da língua portuguesa. Valendo-me da amizade que nos
unia quero deixar nesta crónica uma das
suas canções, para mim, a mais simbólica
e representativa de todas as que escreveu, como se fora uma homenagem ao Paulo
Wright.
"Utopia" de Zeca Afonso
Cidade
Sem muros nem ameias
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio
Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e
justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?
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