Carta Vária, porquê?



quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Este conto que vos conto... "Crónica de um dia de Reis"

 Eu sou raiano, fronteiriço da zona de Trás-os-Montes que se confronta com Leão e Castela. Fronteiriço, pois. Quando no final do Sec.XV, Isabel de Castela e Fernando de Aragão se casaram e começaram a construir a moderna Espanha, precisaram não apenas de armas e dinheiro mas também de símbolos. É  assim que os Reis Magos que, segundo a lenda cristã, tinham ido ao presépio prestar homenagem ao Deus-Menino, passam então a estar ao serviço dos reis católicos para os ajudar a construir a nova Espanha. E no dia 6 de Janeiro de cada ano, dia de Reis, no calendário cristão-católico, aí estão eles de volta a percorrer toda a Espanha, deixando presentes. Como não podia deixar de acontecer o costume atravessou a fronteira e instalou-se nalgumas zonas de Trás-os-Montes. Eu sou desse tempo e enquanto recebi presentes foi dos Reis Magos que os recebi. Nunca mantive relações com o Pai Natal da Coca-Cola.
Pois bem, aí pelos meus nove anos, morando eu em Vinhais, fiz o meu pedido aos santos Reis Magos para que me dessem  de presente uns novelos de lã azul para que a minha mãe me fizesse uma camisola. O dia de Reis foi-se aproximando e a minha ansiedade crescia. E crescia de tal modo que, na noite de 5 para 6 de Janeiro, não consegui conciliar o sono. Foi assim que lá pelas tantas da noite vi entrar a minha mãe no quarto, onde dormia eu e o meu irmão, e colocar nos nossos sapatos novelos de lã. Quando, depois da minha mãe ter saído do quarto, tudo regressou ao silêncio da noite, levantei-me da cama e fui ver os meus sapatos. Olhei e não quis acreditar. A minha lã era vermelha. A do meu irmão é que era azul. Pensando tratar-se de um engano, troquei as lãs, ficando eu com a azul e o meu irmão com a vermelha. E dormi finalmente .
De manhã, corri para a minha mãe para mostrar-lhe o "presente " dos Reis. Ela olhou-me  e disse secamente: mas a tua lã era vermelha!
Ainda tentei salvar a situação, mas diante da sua intransigência coloquei a lã em cima da banca da cozinha e gritei-lhe desafiador: não quero essa lã, não quero a camisola e isso dos Reis Magos é tudo mentira, porque eu vi a senhora por a lã nos sapatos! Duas bofetadas e uma sentença condenatória final foram o resultado da minha audácia.
Nunca mais tive presentes dos Reis Magos. A minha mãe morreu com 94 anos mas a sentença foi inexoravelmente cumprida.
Logo a seguir saí de casa, desci as escadas do adro da Igreja Matriz, atravessei a rua e fui para casa da minha tia Ana de quem eu gostava imensamente e que tinha um batalhão de filhos. Quando lá cheguei e entrei, os meus primos todos de uma só vez quiseram saber o que os Reis Magos me tinham deixado de presente. No princípio fiquei calado, mas depois de muita insistência, disse-lhes:
-Nada!
Ficaram atónitos. Foi a minha tia Ana que desfez o embaraçor:
- Tinha sim, os Reis Magos deixaram-te lã para uma camisola nova.
-Não tia, quem pôs a lã no meu sapato foi a minha mãe, eu vi.
-Não viste nada!
E aí vão mais duas bofetadas, que ainda me doeram mais do que as da minha mãe, porque daquela tia eu podia esperar tudo menos desamor. E logo os meus primos em coro:
-Mentiroso, mentiroso! Sai daqui e vai apanhar ar fresco que te há-de fazer bem  à cabeça.
E foi assim que nesse dia de Reis me vi na rua como cão sem dono, batido e expulso por todo o mundo. Como não tinha para onde ir e também não me agradava nada ir para casa, fui sentar-me, apesar de fria, na escada da porta lateral da Igreja Matriz. Ali fiquei, até que chegou o Padre  Miguel, coadjutor da paróquia e cujo "único defeito" para os seus paroquianos era o de ser preto, e me perguntou:
- Então que fazes aqui?
- Nada !- respondo.
- Vai para casa que está frio.
- Não quero ir para casa. Estou zangado com a minha mãe.
-Está bem - disse ele - então vem comigo para a Sacristia e ajuda-me a organizar os presentes para os meninos da catequese.
Levantei-me e entrei com ele na Igreja e fomos para a Sacristia. Aí o padre Miguel insistiu:
-Então, conta-me lá, porque é que estás zangado com a tua mãe?
Entre lágrimas e soluços contei-lhe todas as desventuras que naquela manhã me aconteceram.
-Deixa lá. Vamos preparar a festa da catequese hoje à noite. Aí haverá presentes para todos.
Durante as arrumações e preparativos o Padre Miguel lá me foi dizendo que os Reis Magos, de facto, não vinham trazer presentes. Que tudo era apenas para lembrar o que aconteceu quando eles chegaram ao presépio para adorar o menino Jesus e fazer-lhe as suas oferendas de ouro, incenso e mirra. Em que o Natal não era mais do que a festa de aniversário de Jesus...Assim fui esquecendo as minhas mágoas enquanto organizava os presentes e as rifas. Lá pelas tantas o Padre Miguel perguntou-me:
-Que presente gostarias que te saísse na rifa?
-O João Teimoso (o sempre em pé), respondi sem hesitação.
Então o Padre Miguel escreveu no papelinho da rifa o número correspondente ao João Teimoso, deu-mo e disse-me:
-Guarda-o. Quando for a tua vez de tirar a sorte, leva-o, esconde-o na mão e quando abrires o João Teimoso será teu. Mas é segredo entre nós, percebes?
Assim se combinou  e assim se fez. Mas, mesmo assim, só quando me vi com o boneco na mão é que acreditei. Dei pulos de contente. Aquela, sim, foi a minha noite de Reis.
Depois de  Vinhais o Padre Miguel passou por outras paróquias até chegar à de Santa Maria, em Bragança. Construímos ao longo dos anos que ainda convivi com ele uma grande amizade e foi com imensa tristeza que, estando eu já no Brasil, soube da sua morte inesperada. Bragança parou para homenageá-lo. Da Igreja de S. Vicente até ao cemitério, toda a cidade saiu para a rua para prestar-lhe uma última homenagem. O seu caixão desfilou como se fosse um rei.
Passado algum tempo, quando se tratou de translada-lo para um mausoléu construído de propósito para recebê-lo, correu "à boca pequena", muito em segredo, que o seu corpo já não estaria no caixão, teria desaparecido. Para mim, isso não é novidade nem surpresa, pois estou certo de que como Rei Mago voltou à sua África, de onde tinha saído há quase dois mil anos, guiado por uma estrela, ao encontro  de um menino que nascera para construir a Paz.

1 comentário:

  1. E prontos .... ficamos a saber de onde lhe vem a a tendência de andar a fazer de rei mago toda a vida,, dando cada vez mais pela evidência, que cada vez há mais meninos com uma vida muito mais negra do que desejaríamos

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