Quando o Papa Francisco foi eleito, o que criou uma grande
surpresa entre os vaticanistas, entendi que, apesar de todos os anos que passei
na Argentina nunca me interessei pela atividade da sua igreja que, ao tempo, me
parecia nula em relação à atuação dos generais que mantinham sob tacão o povo
argentino e foram autores e cúmplices de crimes contra a humanidade, alguns dos
quais, até hoje não foram punidos.
Nunca vi o Papa Francisco mas não perco a esperança de vê-lo
e até falar com ele, nem que seja só por momentos. Não quero contar-lhe o que
foi a minha vida como sacerdote mas quero parabenizá-lo por tudo o que tem
feito pela igreja de que é Pontífice. Contar-lhe o que foi a minha vida como
sacerdote levaria muito tempo, tempo esse, que não posso roubar a todos os
fiéis que ele tem à sua guarda. Conto-o aqui. Mesmo levando em conta que nem
todos a quem eu queria chegar lerão estas linhas.
Depois de quatro anos no Brasil ao serviço da Universidade do
Maranhão e da diocese de S. Luís, entendi que a minha missão não era essa, que
a minha missão era trabalhar com os pobres, tantos eles eram nessa cidade. Ali
conheci a verdadeira miséria. Assim, saí do Palácio arquiepiscopal e fui morar
numa favela , o Matadouro, igual a tantas outras que havia em S. Luis. A minha
paróquia era constituída por três favelas: O Matadouro, a Floresta e o bairro
da Fé em Deus. Mudei-me de armas e bagagens e comecei a minha nova vida. Como a
assistência religiosa é quase nenhuma nas favelas, comecei por reunir alguns
conhecidos que tinha por lá e começámos a discutir o que fazer. Discutimos, discutimos
e vi que lhes faltava tudo a que a dignidade diz respeito. Em nenhum dos
bairros havia escola ou qualquer lugar de assistência médica. Mas essas duas
questões foram reivindicações que logo se puseram. Todos queriam escola para os
seus filhos e um médico que lhes desse assistência, porque tanto a escola como o hospital ficavam longe.
Assim, construíram-se três barracos de pau a pique e cobertos de palha, como
eram as nossas casas, só que maiores, e nomearam-se professores, alguns
daqueles que sabiam ler e escrever, sem qualquer promessa de salário. Para resolver
o problema dos médicos, falei com dois médicos amigos, ambos comunistas, que
todas as semanas passavam nos ambulatórios improvisados e atendiam as pessoas
que lá se podiam deslocar. Caso não pudessem, eles mesmos iam a casa dos doentes.
Salário zero.
O tempo foi passando até que fui chamado ao Arcebispo. Ele
disse-me que sabia que eu até á data ainda não tinha rezado missa, nem feito qualquer
outro serviço religioso. Perguntou-me porquê e eu respondi que as populações
ainda não tinham pedido e que também não tinha havido tempo, tal era urgência
das suas necessidades humanas. Mas que em breve tudo se regularizaria nesse
sentido.
A capela de Sto Expedito, a única na paróquia, era demasiado
pequena para que todos assistissem à missa dominical. Resolvemos então fazer o
levantamento de todas as ruas da paróquia e determinar que a obrigação de missa
dominical passavam a ser num dia determinado da semana. Assim, a rua A,B, C, assistiriam
no sábado; As ruas D, E, F, assistiriam na segunda-feira; as ruas G, H, I
assistiriam na terça – feira e assim por diante. Os domingos seriam destinados
somente às crianças. Além do mais, os horários do culto eram sempre de tarde,
uma vez que a absoluta maioria dos favelados trabalhava. Por decisão da comissão
e de outros mais, os atos de culto seriam todos em Português, incluindo a missa,
pois, como eles diziam, Deus deveria compreendê-lo. Aboliu-se a confissão individual;
os pobres têm poucos pecados, ou nenhuns. Todos os que estavam na capela
rezavam em voz alta a oração da Confissão e eu como sacerdote dava uma
absolvição geral. Todas as pessoas que pudessem deveriam assistir aos batizados
porque como eu lhes dissera, este era o ato mais importante da vida de um cristão.
Aboliu-se o jejum e a abstinência, uma vez que sendo todos pobres, não havia
necessidade de tais sacrifícios, pois, por necessidade, jejuavam todos os dias.
As festas religiosas, as que já havia e outras que nós criámos, realizavam-se na
rua que ia ter à capela porque era a mais larga e central de toda a paróquia. Cada
um levava o que tinha em casa para comemorar a Festa, colocava-o numas mesa diante
da capela e assim todos participavam da comemoração. É claro, que todas estas
mudanças começaram a se divulgar nos outros subúrbios onde os sacerdotes
continuavam a tradição.
Na capela, antes dos ofícios religiosos e depois, se alguém
tinha dúvidas, discutiam-se e resolviam-se todos os problemas referentes à
população do bairro. Também não havia dinheiro para pagamentos de serviços,
pois sendo todos nós pobres, tínhamos de fazer da solidariedade a nossa moeda
de pagamento.
Devo acrescentar ainda que a comunidade protestante que
existia na paróquia, um dia veio ter comigo e pediu-me autorização para
frequentar a igreja como os outros moradores da paróquia. Fizemos uma grande
festa em sua homenagem e a comunidade sentiu que era bem-vinda.
Como não podia deixar de ser o arcebispo chamou-me um dia, de
novo, ao Palácio porque queria saber o que
estava a acontecer naqueles bairros. Eu contei-lhe sem nada omitir e ele
disse-me apenas que alguns padres tinham ido protestar à Cúria por ele não ter
tomado nenhuma providência em relação a mim. Perguntei-lhe o que pensava ele
mesmo sobre esse assunto, uma vez que nunca tinha ido lá e respondeu-me: não
sei, nem quero saber! Perguntou-me ainda como é que eu vivia. Eu respondi-lhe
que vivia como todos os meus paroquianos, numa casa de pau a pique, coberta de
folhas de palmeira e com uma única divisão. Os meus móveis eram uma rede e um
caixote onde punha alguns livros. Comia aqui e ali, um “chibezinho” de vez em
quando.
Um dia, apareceram na cidade grandes cartazes que diziam:
venham assistir ao Natal na Floresta que lá é diferente. Tinha sido o pessoal
do Jornal do Povo onde eu trabalhava que os fizeram. Este cartaz foi a última
gota de água na paciência do Arcebispo. Sem que eu lhe pedisse nomeou-me para outra
paróquia e mandou para aquela minha um padre que nunca lá pôs os pés, soube disso
mais tarde. Aceitei a vontade do Arcebispo, mas quis marcar aminha saída de
forma inesquecível. Realizei o Natal na rua. Toda ela engalanada com
mangueirinhas, faixas e cartazes. Todas as pessoas vestiram as suas melhores
roupas e eu fiz um batizado que nunca esquecerei. A Dilma montada num jumento,
como Nossa Senhora, trazia o seu filho, de poucos dias , ao colo, embrulhado
numa manta branca. Puxando o jumento, vinha o marido vestido com uma túnica
comprida. Quando a Dilma chegou às portas da capela, desceu do jumento e pôs o
menino num berço ali colocado. Ouviram-se palmas, muitas palmas. Com grande
emoção todos foram beijar o pé do menino. Aí entraram os do “bumba meu boi”, o povo cantou e dançou e a festa foi até de manha, quando se recolheram
às suas casas. Tinha gente de outros bairros, muita gente. Alguns choraram,
abraçaram-se, pediam-se desculpas. As estrelas do céu brilhavam com mais
fulgor.
A seguir, eu fui ao meu barraco, e sem me despedir de ninguém,
embrulhei a minha rede, peguei nos poucos haveres e, acompanhado do Augusto,
fui para sua casa. Passei por Pernambuco, fui para o Rio de Janeiro e daí para
a União Soviética, já desligado da Igreja.
Só voltei à Floresta 30 anos depois. Estava a conversar com
umas pessoas quando alguém me tocou. Era um moço negro, alto e bonito que me
disse: Boa tarde, meu padrinho. Eu sou o Jesus, o menino do presépio.
Alípio de Freitas