Carta Vária, porquê?



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"...e o menino era preto"



Em 1961 era eu vigário de uma paróquia do subúrbio de S.Luis de Maranhão. Era uma paróquia pobre, muito pobre, não fosse ela de subúrbio. Três pequenos bairros (o Matadouro, hoje Liberdade, o  Floresta e o Fé em Deus, metade de palafitas e a outra metade de casa de pau a pique, cobertas de palha de palmeira. Havia algumas, muito poucas de tijolo nú e telha vã. Nada de água ao domicilio ou de saneamento básico. A electricidade era roubada da rede pública. Cada qual, eu mesmo, fazia a sua baixada. Não havia escolas, nem postos de saúde. Na Floresta existia uma capela em honra de Santo Expedito, que teria uns 70, 80 metros quadrados de superfície. O único equipamento social(?) era o serviço de altifalante do Cerejo que transmitia música, mensagens e recados para as três comunidades(?).
Por muita insistência minha, o arcebispo de S.Luís criara ali uma paróquia -a Paróquia do Divino Espírito Santo - pensando talvez que aquela minha insistência era assim como "uma  vontade que dá e passa".Não foi assim. Aluguei uma casa de pau a pique ao lado da capela e mudei-me para lá " de mala e cuia". Como eu estava muito ligado às organizações populares de bairro, a mudança não foi difícil. Sabia o que me esperava. A minha opção de vida era ser pobre entre os pobres. Mas criar a partir daquelas três comunidades de excluídos, uma igreja viva, preocupada, sem preconceitos, uma igreja  ao modo das primitivas igrejas cristãs, onde o amor supera tudo foi uma saga difícil, muito difícil mesmo.
No mês de Dezembro de 1961, o Arcebispo pressionado por forças que de todos os lados se levantavam contra "o novo" que estava ali a nascer, disse-me que eu teria de sair da paróquia até ao final do ano. Não questionei a decisão, não disse uma única palavra, levantei-me e saí do palácio arquiepiscopal. Também não comuniquei nada aos meus companheiros de aventura.
O Natal estava a chegar e como todas as festas da paróquia se celebravam na rua, como se fossem festas populares, as tarefas eram muitas, pois havia gente de outras paróquias que quase "clandestinamente" se associavam à nossa. As cirandas, os Bumba-meu-boi, as danças, os tocadores de viola, os rabequistas, tudo leva o seu tempo a preparar com esmero. E também as compras para as comidas e guloseimas que durante toda a festa se serviam aos da casa e aos de fora. Tudo na rua em frente à igreja e ás casas dos moradores.
Preparou-se também um presépio, onde para curiosidade de muitos substitui a manjedoura por uma cadeira enfeitada como se fosse um trono. A curiosidade era muita, mas ninguém perguntou nada.
Lá pelas onze da noite, já o Largo da igreja e toda a Rua Mem de Sá fervilhavam de gente, falando, comendo e bebendo. Ouviam-se músicas  e cantadores ao desafio em honra do menino Deus. Os Bumba-meu-boi evoluiam ao som de matracas e cantares. Os aplausos  distinguiam este ou aquele. O grande momento seria a Missa do Galo mas não havia altar preparado e eu que a devia celebrar andava por ali, no meio da gente. Havia a suspeita de uma surpresa, mas ninguém se abalançava a um palpite.
À meia-noite em ponto, quando o Cerejo pôs no ar uma canção de Natal e estalejaram foguetes no céu, todo o mundo ( e digo todo o mundo em sentido real), todos os olhos se voltaram para o cimo da Rua Mem de Sá e aplaudiram freneticamente. O Zeca puxava um burro pela rédea  no qual vinha sentada a Dilma com o seu filho Dimas, um bebé de dias. Desfilaram em triunfo por entre aquela multidão de pessoas  que ajoelhadas ou em pé os aplaudiam.
Quando chegaram ao presépio a Dilma desceu do jumento e foi sentar-se na cadeira com o menino sobre os joelhos. Foi então que eu disse uma poucas palavras e, em seguida, ajoelhei e beijei os pés do menino, convidando todos a fazerem o mesmo.Ninguém hesitou. Ninguém pôs em dúvida de que aquele menino preto, o Dimas, era o verdadeiro Jesus.
Já aquela noite de Natal ia muito alta, quando as cirandas se calaram, os Bumba-meu-boi começaram a recolher-se, as rabecas e violas deixaram de se ouvir e o Menino se retirou para casa. O ar que se respirava era de silêncio e de paz.
Exausto e triste, mas mais triste do que cansado, entrei finalmente na minha tapera, sentei-me na rede e chorei longamente. Senti-me sem eira nem beira, como se atirassem para fora do mundo. Afinal estava a ser expulso do meio do meu povo. Peguei então num caderno e numa esferográfica e escrevi a minha mensagem de despedida que a minha comadre e vizinha D. Maria entregaria ao Cerejo para ele ler no altifalante:"Tenho de partir. Contra a minha vontade. Faço-o agora depois que Jesus nasceu entre nós. Quero que saibais que vos amei e amarei sempre. Adeus".
Juntei então as minhas coisas, uma muda de roupa, uns livros, meti tudo num saco de estopa e fui para casa do Augusto do Nascimento, meu mestre e companheiro no movimento camponês, no bairro do Cavaco, um outro bairro pobre de S.Luis.
Parecia que já me esperava pois, ao lado da sua, havia armado uma rede vazia. Falámos durante uns cinco minutos, depois descalcei as sandálias, afundei-me na rede e dormi até tarde. Fiquei com o Augusto vários dias e foi  de lá , da sua palafita que parti, de novo, à conquista do mundo e de uma noite de Natal sem fim.
Passados mais de vinte anos, muitos sóis já nascidos e postos, centenas e centenas de caminhos andados, muitos combates travados, uns vencidos outros perdidos, liberdades e prisões à mistura, regressei à paróquia do Divino Espírito Santo, para matar saudades do povo da Floresta, do Matadouro e do Fé em Deus. Algumas pessoas foram-me reconhecendo e a notícia da minha presença correu célere como fogo em mato seco. Todos queriam falar comigo, tocar-me, contar novidades, saber se viera para ficar. Foi então que um rapaz forte e alto, morenaço abriu caminho entre os presentes  e aproximou-se de mim, tirou o boné, apanhou a minha mão direita e antes de beijá-la disse: a sua bênção meu padrinho. Eu sou o Jesus.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Falácia da Dívida



Há dias num almoço partidário, o deputado do PS, Pedro Santos, afirmou que se deveria usar a dívida como arma de arremesso contra os credores, especialmente alemães, como forma de fazê-los entender que empréstimo e usura não são a mesma coisa. O que o deputado Pedro disse nem sequer é novidade, mas expressa bem o sentimento dos portugueses em relação a tudo o que a TROIKA, através do governo, está impondo ao país real. Se fosse noutro tempo lá estaria o deputado Pedro Santos, mais a sua família, descalços e de corda ao pescoço, a caminho de Berlim, para humilhados, ouvirem da boca da chancelarina Merkel, a irrevogável sentença condenatória. Teve sorte o deputado, pois os mastins que zelam pela DIVIDA SOBERANA e pela TROIKA podem ladrar, não podem morder.
Renegociar dividas, dar-se como insolvente, ou declarar moratórias são atitudes correntes, normais no sistema capitalista, quer entre países, quer entre empresas, quer até entre cidadãos. Por que não haveria de sê-lo em Portugal ou de Portugal com os seus credores, especialmente quando as condições que se impõem ao devedor raiam os limites da extorsão, atentam directa e objectivamente contra a soberania ou a própria existência do PAÍS?
Certamente não serei eu a pessoa mais indicada  para dar conselhos, até porque os "bons conselhos" os advogados vendem-nos. Mas sempre direi que o ataque ao pagamento da dívida deveria ter sido precedido  de um projecto de lei exigindo uma AUDITORIA RADICAL E INDEPENDENTE às contas públicas, privadas e marginais do Estado, na sua totalidade, e dos agentes públicos e privados que operam essas contas. Tudo a começar em 1974, após a restauração da actual Democracia. A partir daí poder-se-ia então falar de dívida externa com propriedade. Antes disso, tudo que se diga ou escreva, não passa de "faits divers".
Repito "faits divers", porque, com a instauração do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição, há 500 anos, os portugueses começaram a omitir-se da sua cidadania. Preferem fazer de conta que não sabem, que não vêm, que não ouvem. Ou então vão-se embora, mesmo sem ser o primeiro-ministro a mandá-los.
É urgente desenterrar a caveira de burro que um qualquer inquisidor-mor enterrou em algum lugar deste país e que emite energia negativa sobre esta terra e o seu povo, transformando a terra numa praia de onde só se parte e o seu povo em ausência. Os portugueses querem ser felizes aqui, nesta terra que é a sua. Felizes e cidadãos, não importando o nome que se dê à sua forma de viver e estar no mundo. Felizes e Cidadãos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Um insólito doutoramento



O hábito de andar por aí, assim a andarilhar fez com que sempre estivesse atento à história não me admirando portanto de nada. Aliás a Bíblia refere  há centenas e centenas de anos, que "não existe nada de novo debaixo do sol". É um aviso antigo e sábio, mas que a "nossa vã filosofia" nos faz esquecer. Por isso não me admirei que uns epígonos quaisquer fantasiados de responsáveis da Universidade do Mindelo atribuíssem ao Sr. Adriano Moreira o título académico  de "Doctor Honoris Causa", que ele o sr. Moreira aceitou.
Foi e é baseado em critérios semelhantes aos dos responsáveis da universidade do Mindelo que os neo-nazis alemães criaram a "verdade histórica" de que depois de Lutero, Hitler foi a mais amada personalidade da história da Alemanha; que os franquistas mais próximos de Franco, ainda ele insepulto, já tinham preparado um processo pronto para dar entrada na Cúria Vaticana para que fosse declarado "Beato", como convinha a um "Caudillo de España por la gracia de Dios"; foi assim que Estaline, apesar dos crimes da colectivização, dos julgamentos de Moscovo, das diversas limpezas étnicas e de todos os Gulags, era apelidado de "Paizinho" e de "Guia" universal da Humanidade.
Os exemplos de amnésia política e cultural que conduzem ou pretendem conduzir, e nalguns casos com sucesso, ao esquecimento dos crimes cometidos contra a humanidade são muitos, multiplicam-se. Por isso é necessário estar atento, vigilante. A mim tanto importa que o autor do crime se chame Adriano Moreira ou Videla, Ulstra Brilhante, Pinochet ou Suharto, ou outro(infelizmente há muitos!)e menos ainda que tenham morrido ou se escondam sob qualquer disfarce. Tais crimes são imprescritíveis e o seu julgamento é da alçada dos tribunais. E que não haja amnistias que descriminalizem os autores dos crimes e condenem as vítimas. Não é vingança o que se pretende. Apenas justiça.
Aqui, em Portugal, as amnistias e as revoluções democráticas entenderam mal a fábula do cordeiro e do lobo. Aparentemente abriram um espaço sem fim aos cordeiros e circunscreveram o dos lobos. Mas as vigilâncias foram-se relaxando e hoje a fábula volta repetir-se - a culpa é e sempre foi dos cordeiros.
Voltando ainda ao caso do doutoramento Honoris Causa do sr. Adriano Moreira há algumas perguntas que têm de ser feitas e conviria que fossem respondidas:
  1. 1.     a escolha do dia 10 de Dezembro, dia que foi escolhido pela ONU para relembrar os Direitos Humanos, foi propositada ou casual?
  1. 2.     conhece-se algum texto ou discurso ou simples comunicação do sr. Adriano Moreira reconhecendo como um erro político a atitude do Salazarismo contra o direito dos povos das colónias à independência?
  1. 3.     reconheceu  alguma vez o sr. Adriano Moreira que no "Campo de Trabalho" de Chão Bom(Tarrafal) se praticava a tortura e os prisioneiros eram submetidos a um regime carcerário indigno?
  1. 4.     os promotores da atribuição da referida distinção académica levaram em conta a opinião dos seus concidadãos, antigos prisioneiros e sobreviventes do Tarrafal?
  1. 5.     os mesmos promotores alguma vez se questionaram sobre o papel que o Tarrafal representou na história política e na luta anti-fascista?
  1. 6.     os promotores da citada homenagem ao sr. Adriano Moreira sabiam e sabem que os actos praticados no Tarrafal contra os prisioneiros políticos que por lá passaram ou lá faleceram são crimes contra a humanidade, inafiançaveis e imprescritiveis?
  1. 7.     sabem também os promotores que quem encobre tais crimes e obstaculiza o trabalho da justiça, ou protege os seus autores incorre em penas semelhantes às aplicáveis aos crimes?
Consumada que está esta afronta pública aos Direitos Humanos, só resta à Universidade do Mindelo anular a concedida distinção ao sr. Adriano Moreira e pedir desculpas, mesmo que formais, a todos aqueles a quem ofendeu com a leviandade deste acto.

domingo, 4 de dezembro de 2011

P´ró lixo os contos de fadas



Há uns dias, no aniversário de uma pessoa muito querida, meninos e adultos fartaram-se de falar das personagens desses contos de fadas, que os nórdicos nos vêm impingindo há uma série de anos. Falou-se do lobo mau, do capuchinho vermelho, da avozinha não sei quantos, e até da bruxa feia , má e nariguda.
Confesso que senti saudades dos meus tempos de criança, quando na quinta do meu avô paterno, à noite, na lareira, o tio Cinzento, o tio Baptista, o tio Sernande e o meu avô contavam histórias fantásticas do Mau Soldado, do Judeu Errante, do Frade Peregrino, da Sopa de Pedra, da Raposa e do Grou, das batidas aos lobos, e até dos "milagres" da Bruxa de Quiraz. Aquilo é que eram histórias e todas verdadeiras, pois tanto o tio Baptista, como o meu avô e os outros tinham tomado parte nelas, ou como testemunhas ou como actores.
Agora não. As histórias que se contam aos meninos são todas de faz de conta. Tal qual o palavreado dos políticos. E é assim que eles nos enganam ou tentam enganar. Sempre sem credibilidade, pois a história é interpretada de acordo com as personagens. Interesses e humores, o que é muito, muito grave, pois os interesses são conhecidos, mas os humores, esses nem Freud nos pode ajudar a defini-los.
Há muitos políticos, jornalistas, professores, comunicólogos e outros que se sentem bem assim, assimilados por uma cultura estranha e estúpida. Muitos mais do que seria legitimo pensar. Pois que se fiquem com ela, com essa cultura bárbara e rendam embevecidos todas as homenagens à sra. chancelarina Merkel e ao seu escudeiro de serviço, sr.Sarkozy. Eu aqui só posso falar por mim, continuarei fiel à cultura mediterrânica, a única que vingou e floresceu na Europa. Daquele mundo que os romanos e gregos denominaram de barbárie só quero distância. Muita distância.
Amo as histórias do Mau Soldado, da Bruxa de Quiraz, encantam-me as proezas dos contrabandistas, das batidas aos lobos, das raposas matreiras, das caçadas aos javalis. Ponho o pecado e a virtude em pé de igualdade, porque ambos são humanos. Gosto de navegar para o Sul, porque é abaixo do Equador que reside a alegria. Gosto deste mundo mediterrânico. Foi aqui, que um deus desconhecido acasalou o sol, o vinho e o amor para que se pudesse ser feliz. Um deus desconhecido que nada tem a ver com o deus desses luteranos e calvinistas que queimam com fogo e fósforo Sodoma e Gomorra e Faluja , no Iraque. Teremos de  já hoje, agora, se quisermos sobreviver como civilização, de dizer a eles e aos seus bajuladores que nos esqueçam, que não insistam em domesticar-nos. Os WASP (brancos, anglo-saxões de protestantes) já causaram tantos danos à humanidade e ao Universo que já é tempo de saírem de cena no Grande Teatro do Mundo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Indignação vai voltar à rua



Os partidos de esquerda, ditos ou autodenominados, convivem mal com os movimentos sociais que não controlam.
Não é de hoje, sempre foi assim. Portugal não é diferente dos outros países. Assim os movimentos populares sem ideologia definida mas fortemente reivindicativos, são objecto da repressão dos Governos de direita, da infiltração policial, do aproveitamento de um certo lumpesinato, que actua como agente provocador e do combate ideológico e até político de esquerdas que ainda pensam e até se julgam motores da história ou vanguarda de uma classe operária que já nem existe. O Marxismo, saiba-se, não é um dogma. É uma ciência viva. Ciência Viva.
Mas afinal quem vai às manifestações organizadas pela plataforma 15 de Outubro?
Os deputados à Assembleia da República, a Troika, o Governo da Troika, os banqueiros, os gestores públicos, os secretários de estado, os fazedores de opinião, aqueles que transferem os seus roubos para os off-shores, os "pais da Pátria", o sr. Silva, Presidente da República?
Não, esses não vão às manifestações, pela simples razão de que o Estado não dispõe de uma frota automóvel blindada para transportá-los. Além disso, o cheiro do povo causa-lhes náusea. Têm estômagos muito, muito delicados.
Sendo assim, e por exclusão, às manifestações da plataforma 15 de Outubro, e com números já preocupantes para os bem pensantes, são os jovens desempregados, à procura de um emprego, os sem presente e menos futuro, aqueles que já pensam em emigrar, os sem tecto ou próximos disso, aqueles cujos salários foram reduzidos drasticamente, os empregados  a caminho do olho da rua, aqueles que intuem que isto tem que dar uma volta, mesmo não sabendo qual, aqueles que ao fim de uma vida de trabalho já se preparam para recorrer à caridade pública, os que pensam e são solidários, muitos, muitos daqueles que não aceitam a imposição da mentira, como se fosse uma verdade insofismável. Gente de todas as idades, pois o direito à indignação é um direito inalienável a todo o ser humano.
Que bom que teria sido se, como prelúdio da próxima manifestação, todos os que se dizem oposição ao Governo, depois de terem dito o que disseram, ou muito mais ainda, durante a votação do orçamento do Estado para 2012,tivessem abandonado em bloco a Assembleia da República e deixassem "os filhos da outra", como canta Chico Buarque, a falar sozinhos. Mas não, ficaram. E ficarão sempre, até ao dia em que um contínuo lhes diga: podem ir para casa. Esta fechou.
Todos à Manifestação de Janeiro!