Em 1961 era eu vigário de uma paróquia do subúrbio de S.Luis de Maranhão. Era uma paróquia pobre, muito pobre, não fosse ela de subúrbio. Três pequenos bairros (o Matadouro, hoje Liberdade, o Floresta e o Fé em Deus, metade de palafitas e a outra metade de casa de pau a pique, cobertas de palha de palmeira. Havia algumas, muito poucas de tijolo nú e telha vã. Nada de água ao domicilio ou de saneamento básico. A electricidade era roubada da rede pública. Cada qual, eu mesmo, fazia a sua baixada. Não havia escolas, nem postos de saúde. Na Floresta existia uma capela em honra de Santo Expedito, que teria uns 70, 80 metros quadrados de superfície. O único equipamento social(?) era o serviço de altifalante do Cerejo que transmitia música, mensagens e recados para as três comunidades(?).
Por muita insistência minha, o arcebispo de S.Luís criara ali uma paróquia -a Paróquia do Divino Espírito Santo - pensando talvez que aquela minha insistência era assim como "uma vontade que dá e passa".Não foi assim. Aluguei uma casa de pau a pique ao lado da capela e mudei-me para lá " de mala e cuia". Como eu estava muito ligado às organizações populares de bairro, a mudança não foi difícil. Sabia o que me esperava. A minha opção de vida era ser pobre entre os pobres. Mas criar a partir daquelas três comunidades de excluídos, uma igreja viva, preocupada, sem preconceitos, uma igreja ao modo das primitivas igrejas cristãs, onde o amor supera tudo foi uma saga difícil, muito difícil mesmo.
No mês de Dezembro de 1961, o Arcebispo pressionado por forças que de todos os lados se levantavam contra "o novo" que estava ali a nascer, disse-me que eu teria de sair da paróquia até ao final do ano. Não questionei a decisão, não disse uma única palavra, levantei-me e saí do palácio arquiepiscopal. Também não comuniquei nada aos meus companheiros de aventura.
O Natal estava a chegar e como todas as festas da paróquia se celebravam na rua, como se fossem festas populares, as tarefas eram muitas, pois havia gente de outras paróquias que quase "clandestinamente" se associavam à nossa. As cirandas, os Bumba-meu-boi, as danças, os tocadores de viola, os rabequistas, tudo leva o seu tempo a preparar com esmero. E também as compras para as comidas e guloseimas que durante toda a festa se serviam aos da casa e aos de fora. Tudo na rua em frente à igreja e ás casas dos moradores.
Preparou-se também um presépio, onde para curiosidade de muitos substitui a manjedoura por uma cadeira enfeitada como se fosse um trono. A curiosidade era muita, mas ninguém perguntou nada.
Lá pelas onze da noite, já o Largo da igreja e toda a Rua Mem de Sá fervilhavam de gente, falando, comendo e bebendo. Ouviam-se músicas e cantadores ao desafio em honra do menino Deus. Os Bumba-meu-boi evoluiam ao som de matracas e cantares. Os aplausos distinguiam este ou aquele. O grande momento seria a Missa do Galo mas não havia altar preparado e eu que a devia celebrar andava por ali, no meio da gente. Havia a suspeita de uma surpresa, mas ninguém se abalançava a um palpite.
À meia-noite em ponto, quando o Cerejo pôs no ar uma canção de Natal e estalejaram foguetes no céu, todo o mundo ( e digo todo o mundo em sentido real), todos os olhos se voltaram para o cimo da Rua Mem de Sá e aplaudiram freneticamente. O Zeca puxava um burro pela rédea no qual vinha sentada a Dilma com o seu filho Dimas, um bebé de dias. Desfilaram em triunfo por entre aquela multidão de pessoas que ajoelhadas ou em pé os aplaudiam.
Quando chegaram ao presépio a Dilma desceu do jumento e foi sentar-se na cadeira com o menino sobre os joelhos. Foi então que eu disse uma poucas palavras e, em seguida, ajoelhei e beijei os pés do menino, convidando todos a fazerem o mesmo.Ninguém hesitou. Ninguém pôs em dúvida de que aquele menino preto, o Dimas, era o verdadeiro Jesus.
Já aquela noite de Natal ia muito alta, quando as cirandas se calaram, os Bumba-meu-boi começaram a recolher-se, as rabecas e violas deixaram de se ouvir e o Menino se retirou para casa. O ar que se respirava era de silêncio e de paz.
Exausto e triste, mas mais triste do que cansado, entrei finalmente na minha tapera, sentei-me na rede e chorei longamente. Senti-me sem eira nem beira, como se atirassem para fora do mundo. Afinal estava a ser expulso do meio do meu povo. Peguei então num caderno e numa esferográfica e escrevi a minha mensagem de despedida que a minha comadre e vizinha D. Maria entregaria ao Cerejo para ele ler no altifalante:"Tenho de partir. Contra a minha vontade. Faço-o agora depois que Jesus nasceu entre nós. Quero que saibais que vos amei e amarei sempre. Adeus".
Juntei então as minhas coisas, uma muda de roupa, uns livros, meti tudo num saco de estopa e fui para casa do Augusto do Nascimento, meu mestre e companheiro no movimento camponês, no bairro do Cavaco, um outro bairro pobre de S.Luis.
Parecia que já me esperava pois, ao lado da sua, havia armado uma rede vazia. Falámos durante uns cinco minutos, depois descalcei as sandálias, afundei-me na rede e dormi até tarde. Fiquei com o Augusto vários dias e foi de lá , da sua palafita que parti, de novo, à conquista do mundo e de uma noite de Natal sem fim.
Passados mais de vinte anos, muitos sóis já nascidos e postos, centenas e centenas de caminhos andados, muitos combates travados, uns vencidos outros perdidos, liberdades e prisões à mistura, regressei à paróquia do Divino Espírito Santo, para matar saudades do povo da Floresta, do Matadouro e do Fé em Deus. Algumas pessoas foram-me reconhecendo e a notícia da minha presença correu célere como fogo em mato seco. Todos queriam falar comigo, tocar-me, contar novidades, saber se viera para ficar. Foi então que um rapaz forte e alto, morenaço abriu caminho entre os presentes e aproximou-se de mim, tirou o boné, apanhou a minha mão direita e antes de beijá-la disse: a sua bênção meu padrinho. Eu sou o Jesus.