Carta Vária, porquê?



sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Pequenas histórias da memória


 
Dr. Benês

Quando em 1962 , sem permissão do meu Bispo, fui a Moscovo assistir ao  Conselho Mundial da Paz, tive ocasião de lá encontrar pessoas que já faziam parte da História , como Krutchev, a quem condecorei com uma enxadinha das Ligas Camponeses, tendo-o encontrado mais tarde, já para uma longa conversa, no parque Lenine, quando  ele passeava com duas netas(ou netos); Gagarin  que  a todo o custo me queria cumprimentar dando-me  um beijo na boca;  e outras, como La Passionaria, Pablo Neruda e diversos patriarcas ortodoxos e bispos católicos. Celebrei, também, a convite do Arcebispo de Moscovo, missa católica, na Igreja de S .Luís dos Franceses, à qual assistiu quase toda a delegação brasileira e muitos russos, para quem aquela missa era uma novidade. Foi também o Arcebispo de Moscovo que me convidou, depois da celebração da missa católica, para uma celebração ortodoxa na sua Catedral, com o coro do Bolshoi.
Fiz também uma amizade muito especial com um Ministro da então Checoslováquia, o Dr.Benês, pessoa com quem passei  a me encontrar sempre que estive no seu país.
O Dr. Benês era uma pessoa singular, sempre bem-disposta, e capaz de transformar as piores situações em coisas banais. Um dia, convidou-me para ir almoçar num restaurante perto de Teresin, uma antiga fortaleza militar, mandada construir por Maria Teresa de Áustria e transformada pelos alemães em centro de triagem de prisioneiros, onde morreram cerca de 75.000 pessoas. Como o restaurante onde devíamos almoçar não ficava longe, antes mesmo do almoço, o Dr. Benês fez-me a proposta de visitar a Fortaleza. Aceitei. Logo à entrada, alinhados contra parede havia uma série de beliches de madeira, onde em cada um podiam dormir três ou quatro pessoas. A certa altura o Dr.Benês virou-se para mim, apontou um desses beliches e disse , dando uma grande gargalhada: “este aqui era onde eu dormia, ali, naquele era onde dormia o Ministro da saúde. Logo a seguir dormia o Bispo de”(cidade cujo nome não recordo) e assim por diante. Levou-me depois ao local da Secretaria, à sala dos interrogatórios, e, finalmente, ao saguão onde existiam ainda quatro fornos crematórios. À medida que me ia mostrando toda esta tragédia, o Dr. Benês estava bem-disposto, assobiava, cantarolava, enquanto eu estava cada mais deprimido. Foi assim que eu lhe disse: “Benês, como é que você tendo estado aqui e sofrendo o diabo à mão desses bandidos nazistas, respira tanta alegria, e eu que nunca passei por aqui sinto-me agoniado, tal qual um cão escorraçado?”.Ele parou de assobiar e cantarolar, olhou-me fixamente, de frente, e disse-me muito sério: “Olhe, quando estou triste ou aborrecido, venho aqui e a tristeza e o aborrecimento logo me passam. Mas quando não posso livrar-me desse mal-estar angustiante, vou até Dachau para onde fui para ser executado e só não o fui porque os americanos chegaram. Então sinto-me novo como quando era jovem. Eu devia estar morto, mas estou vivo. Entende agora porque é que eu canto e assobio? É preciso estar diante da morte para se saber o valor da vida”.

Pequenas histórias da memória


Morreste-me Fidel, mas Cuba viverá por ti.

Então, Fidel, vais embora, não avisas ninguém? Devias ter-te recordado que já não estavas na clandestinidade, que muitas e muitas pessoas queriam saber noticias tuas, todos os dias, pessoas que te amavam com grande fervor. Todos sabíamos que a tua saúde estava periclitante mas, mesmo assim, achávamos que, pelo menos até aos cem, tu te aguentarias nas canetas. De qualquer modo, como sei onde estás, sempre que eu quiser, falarei contigo. Tenho ligação direta com a constelação da Utopia, onde tu agora moras. Mas, antes que me esqueça, vou contar-te uma pequena história que me deu a conhecer Cuba, tinha eu uns sete anos.

Lá, em Vinhais, uma vila do Norte de Portugal, perto da Galiza, onde eu fui criado, morava um cubano, já velhinho, chamado Catalino. De Cuba ele só tinha a memória, pois a sua mãe D. Catalina, tinha vindo para Galiza e depois para Portugal para que o filho não fosse mobilizado pelo exército espanhol para lutar contra o seu povo. Por isso, da Galiza, mudou-se para Vinhais. Nunca aprendeu a falar direito o português, nem foi para a escola, e a sua profissão era carregar as malas dos caixeiros-viajantes, de um estabelecimento comercial para outro. Tinha uns grandes bigodes, recordo-me bem. Para transportar as malas usava um carrinho. Quando ficou velho o peso do carrinho e das malas já lhe custavam muito esforço. Então, nós os meninos ajudávamo-lo empurrando o carro. Em troca, quando não tinha de entregar malas, juntava-nos em qualquer lugar e contava-nos muitas histórias, todas relacionadas com Cuba. Sobretudo histórias das guerras que os cubanos travavam contra os espanhóis para se tornarem independentes. As pontas do bigode alçavam-se-lhe e os olhos brilhavam-lhe com muita emoção. A tristeza vinha depois quando tinha que nos dizer que Cuba não se havia libertado.
Quando morreu, pobre como sempre vivera, o padre Miguel, um mestiço moçambicano, quis que ele tivesse um grande funeral. Mobilizou a garotada e também as pessoas grandes e assim, o tio Catalino, teve o enterro de um rei. Até um fato novo vestiu. O único! As pessoas eram tantas que os que viam passar o enterro perguntavam quem tinha morrido. Quando respondiam: “o tio Catalino”,arregalavam os olhos e diziam: “ele bem que merecia!”.

Quando eu em Cuba, me hospedei no hotel Nova Iorque, em Havana Velha, senti que estava em casa, pois os nomes das ruas, e a arquitetura da cidade já eu as tinha na cabeça. Condiziam com as histórias do tio Catalino. Fiquei muito feliz e até chorei de alegria e tive uma imensa saudade dele.

Já eu no Brasil, quando era Director do “Jornal do Maranhão”, não sabendo ainda quem venceria a em Cuba, publiquei um pequeno texto que terminava assim: “debaixo dos céus de Cuba, trava-se uma luta liliputiana. Uma luta pela liberdade”.
O meu amor por Cuba começou com as histórias do tio Catalino e foi-se aprofundando à medida que a guerra avançava em Cuba, agora contra os norte-americanos.. Essa guerra que me pareceu no princípio liliputiana, tornou-se realmente uma guerra pela liberdade.Fiz dela o modelo da minha vida revolucionária e foi da Sierra Maestra que foram descendo os meus capitães: Fidel, Raúl, Che Guevara, Camilo Torres.
Morreste-me Fidel, mas Cuba viverá por ti.